Muito se falou de Bolsonaro e sua queixa de "suprema humilhação" por usar tornozeleira eletrônica, mas elogiou-se pouco seu jogo de palavras – talvez obra de um advogado e não do balbuciante Jair –, que em todo caso é um achado.
O Supremo Tribunal Federal, que o ex-presidente passou a confrontar mal tomou posse, em 2019, lhe impõe agora a pena desonrosa do grilhão eletrônico no processo a que responde por tentativa de golpe de Estado.
"Poxa, eu sou um ex-presidente da República", ponderou Bolsonaro, com seu jeito cândido de exigir o direito sagrado à impunidade e ao tratamento diferenciado que quase sempre coube aos poderosos no Brasil.
Ele tem razão num ponto: sim, é humilhante que um ex-presidente da República precise passar por isso. Quando se tem um filho apregoando ataques à pátria na corte do homem mais poderoso do mundo e um histórico de passeios escusos em embaixadas, acontece. Mas é humilhante, poxa.
A humilhação está etimologicamente ligada ao húmus, quer dizer, à terra. Rebaixa, derruba a pessoa dos degraus da vaidade ou mesmo da dignidade mínima, lançando-a ao chão.
O latim eclesiástico "humiliare" está por trás da ideia de submissão e apequenamento que há no verbo humilhar (-se). Na Idade Média, a humilhação pública era com frequência uma parte legítima do código penal.
Não se tratava de tornozeleira exatamente, embora um dos castigos consistisse em fazer o condenado atravessar um mercado público arrastando uma pedra pesada, a "pedra da vergonha".
Depois piorava. Era comum que o público tivesse permissão e até incentivo para atirar frutas podres e às vezes excrementos no infeliz, entre vaias e gargalhadas. Evoluímos bastante nesse quesito, ainda que as redes sociais tenham inventado um sucedâneo digital para a prática.
É o primitivismo dos rituais medievais de humilhação que o ex-presidente, um entusiasta eloquente da tortura, tenta evocar para atribuir a Alexandre de Moraes um abuso bárbaro – e portanto tirânico – de poder.
Sabe-se que a conversa bolsonarista sobre uma "ditadura do STF" encontra abrigo em número considerável de cabeças que foram radicalizadas no pós-2013, quando a política brasileira afundou no mar de lama tóxica que Jair soube surfar como ninguém.
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Tudo isso é verdade, mas também não é como se Alexandre de Moraes fosse um juiz platônico e impessoal, do tipo que morre abraçado à letra da lei.
Magistrado com apelido, essa entidade rara, Xandão parece estar se divertindo à beça com a margem de manobra autorizada pelo nó tático que o governo Bolsonaro deu nas instituições da República, encaminhando a inimputabilidade de um presidente que cometia crimes em série.
Suprema humilhação foi eleger o Jair, ser governado pelo Jair, perder entes queridos aos magotes na pandemia que o Jair agravou, ver aquela cara e ouvir aquela voz mentindo dia e noite, maquinando seu projeto degenerado de poder.
Suprema humilhação é saber que esse foi um mal que o país se autoinfligiu. Os padres medievais já sabiam que humilhar-se é sobretudo um verbo pronominal.