Acesso a imagens de câmeras corporais de PMs pode demorar meses e atrasa investigações

14 hours ago 1

A falta de acesso imediato a imagens de câmeras corporais para a Polícia Civil de São Paulo em caso de mortes em ações da Polícia Militar tem atrasado investigações e impedido prisões que poderiam ocorrer em flagrante.

Não há regras que garantam que delegados vejam as gravações já no momento do registro da ocorrência, e há casos em que as imagens só são enviadas pela PM após meses de insistência, mostram dados de inquéritos.

Em tese, analisar as imagens enquanto a ocorrência é registrada é quase impossível devido à burocracia, como confirmado por nota encaminhada pela gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos).

De acordo com a Secretaria de Segurança Pública, "a fim de garantir a integridade da cadeia de custódia, o acesso às imagens é feito exclusivamente por meio digital, por meio de um link seguro enviado à autoridade solicitante. Esse acesso é individualizado, com login e senha, e respeita o prazo legal de até 20 dias após a requisição, conforme estabelecido pelas normas em vigor".

Para efeito de comparação, um inquérito policial tem prazo inicial de 30 dias, prorrogáveis pelo mesmo período, ou até mais com anuência do Ministério Público e da Justiça.

O caso da última quinta (10) no qual um homem já rendido foi morto por PMs em Paraisópolis, na zona sul da capital paulista, ilustra a importância da velocidade do acesso às imagens das câmeras. Em questão de horas o comando da corporação analisou o conteúdo da gravação e decidiu prender em flagrante os dois agentes envolvidos.

A reportagem ouviu de um integrante da Polícia Civil que as negativas de acesso imediato às imagens têm incomodado delegados. Alguns desses policiais insatisfeitos estariam procurando promotores de Justiça na tentativa de pressionar para que alguma regra seja criada para disciplinar o compartilhamento de gravações.

Um exemplo dessa demora envolve o caso de Victoria Manoelly dos Santos, 16, morta por um PM na zona leste de São Paulo no dia 9 de janeiro —foram quase quatro meses até a Justiça ter acesso a todo o material filmado.

De acordo com a investigação, o sargento Thiago Guerra, do 48° Batalhão de Polícia Militar Metropolitano Guerra abordou Victoria e seu irmão, de 21 anos. Durante a ação, o PM teria dado uma coronhada na cabeça do jovem, o que fez a arma disparar e atingir a a menina.

Já Guerra disse que o irmão deu um tapa em sua mão, o que causou o disparo.

Com as duas versões, o delegado Victor Sáfadi Maricato, plantonista do 50° DP (Itaim Paulista), passou a tentar assistir a gravação da câmara da PM para descobrir o que tinha acontecido.

Ele fez questão de documentar em boletim de ocorrência como conseguiu o acesso. Disse solicitou a presença do Comando da Polícia Militar na delegacia. Foi quando chegou um tenente com o login e a senha do sistema do equipamento.

Maricato conseguiu assistir o vídeo e pediu uma cópia, o que foi recusado com a justificativa que era necessário formalizar um email com o pedido para o batalhão. O oficial também não deixou que o delegado filmasse o conteúdo pela tela onde foi mostrada a imagem.

O delegado disse no boletim que assistiu a cena por diversas vezes até ter a convicção de que a versão apresentada pelo sargento não era a verdadeira, e então realizou a prisão em flagrante do PM.

No dia 12 daquele mês, ao entregar o relatório final da investigação, Maricato ressaltou que a PM ainda não havia disponibilizado o vídeo. Um dia depois foi a vez do promotor Eduardo Olavo Neves Canto Neto fazer o pedido. Outro a fazer a solicitação com urgência foi o juiz Renan Oliveira Zanetti.

As imagens das câmeras usadas por Guerra e por outros PMs envolvidos na ocorrência foram disponibilizadas em 24 de janeiro, duas semanas após a morte de Victoria. Mas, de acordo com o delegado, o vídeo estava editado, com trechos cortados e sem o áudio. As imagens na íntegra foram disponibilizadas para o Tribunal de Justiça somente em 15 de maio.

Em nota a Polícia Militar disse não ser possível modificar o arquivo original das câmeras. "Sempre que há edição nas imagens para envio aos órgãos solicitantes, é gerado um novo arquivo, preservando o original integralmente".

A resposta encaminhada pela SSP diz que "edições só podem ser feitas por administradores do sistema, em casos justificados, e todas elas são rastreáveis".

A morte do estudante de medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, 22, perseguido por policiais após dar um tapa no retrovisor de uma viatura também compõem a lista de imagens que demoraram a serem disponibilizadas. O caso aconteceu em 20 de novembro.

Os vídeos que mostram a ação dos soldados Guilherme Augusto Macedo (autor do tiro) e Bruno Carvalho do Prado, ambos réus pelo homicídio, foi liberado em dezembro, após pedidos reiterados do delegado e do Ministério Público.

Nesse caso, a Polícia Civil encaminhou solicitações das imagens para um email do Copom (Centro de Operações da Polícia Militar) e para o 12° BPM, unidade em que os PMs atuavam.

Sobre a demora no caso, a gestão Tarcísio afirmou que a solicitação inicial foi encaminhada para um canal inadequado. "Após a correção, os vídeos foram enviados integralmente, inclusive com o código que atesta sua integridade"

Em relação a morte de Victoria, segundo a pasta, foi instaurada uma apuração interna para investigar as denúncias citadas. "A ausência de áudio, contudo, é uma limitação técnica das antigas COPs [câmeras operacionais portáteis], já solucionada no novo modelo", acrescentou a resposta.

De acordo com o governo, "os novos modelos já preveem a possibilidade de compartilhamento automático dos registros de áudio e vídeo com o Ministério Público, o Poder Judiciário e demais órgãos de controle, seguindo as regras estabelecidas pela LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados]."

Segundo o pesquisador Daniel Edler, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o controle da PM sobre as imagens —decidindo quando dá o acesso a outros órgãos e quais arquivos são compartilhados, por exemplo— pode prejudicar investigações..

"Há um debate sobre a natureza legal dessas imagens. Como elas são possíveis evidências criminais, elas poderiam ser de custódia da Polícia Civil [responsável pela investigação], mas a questão é que muitas vezes a instituição nem quer fazer isso, porque há um custo gigantesco para armazenar as imagens", ele explica. "Se a PM diz que não tem imagens que na verdade existem, por exemplo, isso obviamente dificulta as investigações."

Ele lembra que o Tribunal de Justiça de São Paulo chegou a assinar, em 2021, um termo de cooperação com a PM para o compartilhamento das gravações durante audiência de custódia, que permitiu que isso fosse feito de forma mais rápida. O projeto ficou restrito ao Fórum Criminal da Barra Funda e agora, com a mudança do modelo dos equipamentos usados pela PM, é possível que um novo sistema tenha de ser usado.

"Essa demora atrapalha muito, pois causa lentidão no processo, nos relatórios conclusivos, exige, por exemplo, que o delegado fique pedindo dilação de prazo, emperra a máquina judiciária, já tão sobrecarregada, além de deixar o principal interessado que é a sociedade sem as respostas a que tem direito", disse o ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, Mauro Caseri.

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