Ciclocosmo, o blog que destacou o ciclismo como mobilidade, esporte e ativismo, deixa a Folha

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Uma das minhas primeiras memórias é a imagem de meu pai pedalando sua Caloi-10 enquanto puxava minha bicicleta por uma cordinha. Eu tinha quatro anos quando ele decidiu me incentivar a pedalar pelas ladeiras de nosso bairro. A partir daquele dia, a bicicleta virou minha melhor amiga e meu pai, meu ídolo.

Nasci na Bela Vista, bairro central da cidade de São Paulo, mas meus pais achavam que meu irmão e eu precisávamos crescer longe do caos da metrópole. Em 1981, depois que completei 3 anos, mudamos para uma região pouco urbanizada de Barueri, a 23 km da capital.

Cresci com muita liberdade, em contato com a terra e com a natureza, e a bicicleta teve papel fundamental nessa experiência.

Na adolescência, minha relação com a bicicleta cresceu, troquei a aro 20 por uma mountain-bike e comecei a ir cada vez mais longe. Além de usar a bicicleta como meio de transporte, descobri as competições de ciclismo. Fiquei vidrado no clima emocionante das provas que aconteciam no interior de São Paulo e de Minas Gerais —meu pai ou minha avó me levavam todos os finais de semana.

Enquanto a garotada da minha idade experimentava o álcool e todo tipo de droga, eu já estava completamente viciado nas descargas monumentais de endorfina que o ciclismo e as montanhas me proporcionavam. Meu negócio era dormir cedo, me alimentar bem e ficar bem longe das tranqueiras que pudessem prejudicar minha performance de ciclista.

Aos 15 virei profissional. Ganhava salário para pedalar e não tinha ideia que aquilo era, na verdade, um trabalho. Se esporte fosse levado a sério no Brasil, acho que meu destino seria outro.

No começo da fase adulta resolvi dar um tempo dos pedais. Em 1996 iniciei em outra carreira, também precocemente. Com 18 me tornei repórter-fotográfico do Estadão. O negócio deu tão certo que, em 2000, fui convidado para a fazer parte da equipe da Folha. Aceitei na hora, era meu sonho vir para cá.

Os maus hábitos da nova profissão foram minando minha saúde aos poucos. Como todo jornalista de jornal diário, eu comia mal, dormia mal e raramente me exercitava. Nunca fumei e bebi pouquíssimo, mas, de resto, tinha abandonado completamente aquele estilo de vida saudável que marcou minha juventude.

A bicicleta voltou em 2009 para baixar os altos níveis de colesterol. Em pouco tempo a saúde melhorou. Em contrapartida, a profissão entrou em crise. Revolução digital, redes sociais e recessões globais deram início a uma metamorfose no jornalismo. A coisa ficou feia e, pelo jeito, não melhora tão cedo —os maiores jornais brasileiros, que nos anos 2000 vendiam um milhão de cópias e tinham cerca de 30 fotógrafos em regime CLT, hoje têm, no máximo, cinco ou seis fotógrafos e o formato impresso está quase em extinção.

Muitos profissionais como eu, formados em comunicação, migraram para o mercado corporativo ou estão fazendo bicos para o também minguante mercado publicitário, isso quando não vão trabalhar em setores completamente distintos de suas formações.

Nos momentos mais difíceis da vida, pedalar sempre serviu como a dose perfeita de antidepressivo —e como viver nesse mundo não está nada fácil, tenho seguido o tratamento à risca. Minha mãe até brinca: "Já tomou seu Prozac hoje?".

Sim mãe, pedalei e estou muito bem, obrigado.

Em 2019, enquanto "tomava meu Prozac" numa estrada bucólica do interior paulista, reencontrei, depois de muitos anos, uma antiga colega da Folha. Erika Sallum também tinha achado no ciclismo uma válvula de escape para as questões difíceis da vida.

O reencontro casual nos rendeu uma bela união. Foram dois anos de uma relação intensa, marcada por muito amor, pela pandemia e pela luta da Erika contra o câncer. Erika faleceu em 14 de agosto de 2021, aos 45 anos de idade, cinco anos depois de descobrir um tumor maligno na mama esquerda.

Durante o período da doença, a brilhante jornalista intensificou ainda mais sua relação com o ciclismo. Além de "remédio", a bicicleta servia como um potente instrumento de comunicação.

Em 2017, pouco depois de receber o diagnóstico, Erika criou o blog Ciclocosmo. Neste espaço, além de disseminar a cultura do ciclismo, ela imprimiu seus princípios e deu voz a grupos antes excluídos do jornalismo nacional. Nos fez conhecer histórias inspiradoras e abriu nossos olhos para as soluções sociais e ambientais que a bicicleta oferece —como ela dizia: "a bicicleta é uma solução simples, barata, limpa, justa e não deixa ninguém para trás". Erika era uma grande defensora dos direitos humanos e usava o blog nesse sentido.

Com sua partida, assumi o blog. Acredito que meu repertório como ciclista, jornalista e companheiro da Erika me credenciou à função. Tomei como diretriz os princípios de sua criadora. Tentei manter vivas suas mensagens, essenciais especialmente agora, em tempos sombrios de mudanças climáticas, desordem social e instabilidade política.

Hoje, por uma decisão editorial que atinge outras colunas e blogs da Folha, o Ciclocosmo encerra suas publicações neste jornal.

O nome Ciclocosmo continua comigo.

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