Poucos lugares no mundo são cercados de tanto mistério quanto os Arquivos Secretos do Vaticano. Ter acesso às suas prateleiras subterrâneas permitiria enfim desvendar segredos como: a verdade sobre Jesus e Maria Madalena, os evangelhos apócrifos suprimidos, pactos entre papas e ditadores, documentos que confirmariam antigas profecias. Na última semana, passei pelo menos cinco horas diárias nesse arquivo.
Fui como antropólogo que estuda catolicismo. Há dois anos, uma das principais linhas de pesquisa do meu laboratório, o Passagens, sediado na UFRJ, é o mapeamento de igrejas católicas demolidas no Brasil. Já catalogamos quase 200 templos que vieram abaixo ao longo do último século, por razões diversas: incêndios, abertura de ruas e avenidas, inundações, abandono e transformações urbanas de toda ordem.
Meu objetivo no arquivo era encontrar trocas de correspondência, relatórios, memorandos e pedidos formais relacionados às demolições ocorridas no Brasil.
Em 2020 os Arquivos do Vaticano foram rebatizados. Saiu a palavra "secreto" e entrou o termo "apostólico". O prédio do agora chamado Arquivo Apostólico do Vaticano não é aberto ao público e fica em um lugar de acesso restrito, protegido pela Guarda Suíça.
Da porta principal do Arquivo, tem-se uma visão privilegiada da chaminé da Capela Sistina, por onde sobe a fumaça branca que anuncia a escolha de um novo papa. Uma vez lá dentro, temos acesso a um jardim tão escondido quanto espetacular.
Naquelas salas estão documentos que remontam há pelo menos 13 séculos. Para acessar essa documentação, algumas etapas são necessárias: é preciso ser pesquisador reconhecido ou apresentar uma carta de recomendação e enviar um projeto de pesquisa que justifique as buscas.
Uma vez aprovado pelo funcionário que avalia as admissões, o pesquisador recebe um documento que, ao ser mostrado à Guarda Suíça na entrada da Porta Angélica, abre todos os caminhos seguintes.
Não se pode entrar com nada no interior das salas de consulta do arquivo além de papel, lápis e computador. Fotografias são proibidas, de modo que os pesquisadores estão autorizados apenas a anotar ou transcrever o que encontram.
A primeira sala à qual se tem acesso é uma imensa biblioteca composta unicamente por livros-índice. São centenas de volumes que contêm exclusivamente descrições sumárias dos conteúdos das pastas arquivadas.
Ali, o trabalho do pesquisador começa antes mesmo do acesso aos documentos: é preciso decifrar essa rede de referências cruzadas, rastrear palavras-chave, identificar séries para então solicitar, ao limite de duas por dia, as caixas físicas onde estão os documentos propriamente ditos.
Nos livros-índice sobre o Brasil encontrei todo tipo de material: cartas de mães pedindo desconto em mensalidades de colégios religiosos, denúncias contra sacerdotes no início do século 20, memorandos sobre a atuação de evangélicos no Rio de Janeiro na década de 1930.
Quanto aos documentos que buscava sobre a demolição de igrejas, localizei algumas pistas importantes, que devem compor um quebra-cabeça amplo e resultar, espero, em um livro proximamente.
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O trabalho de pesquisa é mais estafante e fragmentado do que sugerem os romances de Dan Brown: nada de encontrar, em um feixe de luz dramática, um documento com a localização do Santo Graal.
O que há são prateleiras, fichas, livros-índice enormes, muita poeira e a paciência de quem pode passar horas tentando decifrar a letra tortuosa de uma troca de cartas entre cardeais e o papa.
Se há algo que realmente impressiona quem está dentro do arquivo não é o que ele esconde, mas sim o que sua existência demonstra: uma instituição de quase 20 séculos com altíssimo grau de centralização, registro e ordenamento.
Não surpreende que os grandes debates sobre dogmas ou decisões administrativas estejam nos arquivos do Vaticano. O que impressiona mesmo é constatar o registro de questões ordinárias, como a dúvida de uma secretária paroquial do interior do Rio de Janeiro sobre a cor da pintura da igreja. Não é por acaso: além da culpa, a Igreja também inventou a racionalidade burocrática.