Incomuns, mas coletivas: o Brasil mapeia doenças raras

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Apesar de individualmente pouco frequentes, as doenças raras (DRs) afetam milhões de pessoas em todo o mundo. Estima-se que mais de 6 mil condições diferentes já tenham sido identificadas, sendo aproximadamente 72% de origem genética. No Brasil, a definição oficial considera rara qualquer doença que atinja até 65 pessoas a cada 100 mil habitantes. Embora isoladamente sejam incomuns, coletivamente essas doenças representam um importante desafio de saúde pública.

Com base em estudos internacionais, calcula-se que entre 3,5% e 8%da população mundial viva com alguma doença rara. Isso representa, no cenário brasileiro, algo entre 7 e 16 milhões de pessoas. Apesar da relevância, a escassez de dados confiáveis sobre essas condições tem dificultado a formulação de políticas públicas efetivas e o planejamento adequado dos serviços de saúde.

Rede RARAS

Foi diante dessa lacuna que, em 2020, nasceu a Rede Nacional de Doenças Raras (RARAS), um inquérito epidemiológico, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e que congrega hospitais universitários, serviços de triagem neonatal e centros de referência, todos vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS). O objetivo é claro: fortalecer a atenção às pessoas com DRs no Brasil, por meio da produção de conhecimento, qualificação do cuidado e formulação de estratégias baseadas em evidências.

Um dos marcos mais importantes dessa rede é o primeiro estudo epidemiológico nacional sobre o tema, publicado por 54 pesquisadores no periódico internacional Orphanet Journal of Rare Diseases, em 2024. O estudo analisou dados de 12.530 pacientes atendidos em 34 unidades de saúde, entre os anos de 2018 e 2019, oferecendo um retrato inédito da realidade brasileira.

Os resultados revelam aspectos cruciais sobre quem são os pacientes "raros" do Brasil. A idade mediana dos participantes foi de 15 anos, com ligeira maioria feminina (50,5%). Cerca de 47% se autodeclararam pardos. A maioria dos pacientes (63,2%) já possuía diagnóstico confirmado, sendo as condições mais frequentes a fenilcetonúria, a fibrose císticae a acromegalia. Entre os sintomas mais comuns relatados estavam o atraso global do desenvolvimento e as crises convulsivas.

"Odisseia diagnóstica"

A chamada "odisseia diagnóstica" —tempo médio entre o início dos sintomas e a confirmação do diagnóstico —foi de 5,4 anos, com ampla variação. Isso evidencia o grande desafio enfrentado por pacientes e famílias na busca por respostas, além das dificuldades dos profissionais de saúde em reconhecer essas condições.

Entre os diagnósticos confirmados, pouco mais da metade (52,2%) foram de natureza etiológica: 42,5% bioquímicos e 30,9% moleculares. Os demais (47,8%) foram baseados exclusivamente em critérios clínicos. Apenas 1,2% dos diagnósticos foram realizados ainda no período pré-natal.

Outros dados importantes incluem as taxas de recorrência familiar (21,6%) e consanguinidade (6,4%), que ajudam a compreender o padrão de hereditariedade em muitas dessas doenças. Quanto aos tratamentos, a terapia medicamentosa foi a mais comum (55%), seguida por abordagens de reabilitação (15,6%). Internações hospitalares foram registradas em 44,5% dos casos, e a taxa de mortalidade chegou a 1,5%, principalmente relacionada a doenças do neurônio motor e à fibrose cística.

SUS tem papel central na assistência aos raros

Um dado particularmente relevante é que o SUS financiou a maior parte dos diagnósticos (84,2%) e dos tratamentos (86,7%), reforçando o papel central do sistema público na assistência a essa população. Ainda assim, a rede de atenção especializada permanece insuficiente: até o momento, pouco mais de 30 serviços de referência para DRs foram credenciados no país, número ainda aquém das necessidades da população.

Desde 2014, o Brasil conta com a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, que estabelece diretrizes para promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento e cuidados paliativos. Essa política reconhece a complexidade das DRs e as agrupa em dois grandes grupos —genéticas e não genéticas —subdivididas em categorias como anomalias congênitas, deficiência intelectual e erros inatos do metabolismo.

Apesar dos avanços recentes no diagnóstico, impulsionados por novas tecnologias e maior organização dos serviços, o país ainda não dispõe de um sistema estruturado de registro de doenças raras. Com exceção de algumas condições infecciosas de notificação compulsória,os dados disponíveis são esparsos e frequentemente limitados a distúrbios específicos.

A continuidade desse esforço é fundamental. Idealizada pela geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,Têmis Maria Félix, a Rede RARAS já finalizou a fase longitudinal e prospectiva do estudo, que permitirá acompanhar ao longo do tempo a trajetória clínica e social dessas pessoas. A expectativa é que esses dados influenciem diretamente as decisões em saúde pública, contribuindo para melhorar o acesso ao diagnóstico, o manejo clínico e, sobretudo, a qualidade de vida de quem convive com uma doença rara no Brasil.

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Este estudo multicêntrico representa um passo decisivo. Em minha opinião, ele não apenas fornece uma base epidemiológica inédita como também evidencia a importância da colaboração entre centros especializados. Informações robustas são essenciais para o desenvolvimento de políticas públicas eficazes, desde a alocação de recursos até o incentivo à pesquisa e à condução de ensaios clínicos. Nesse contexto, tenho especial orgulho e admiração pelo que temos realizado no Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe – Uerj), ao contribuir com dados inéditos, mostrando nossa realidade no Estado do Rio Janeiro.

Acredito que ciência, afinal, não é apenas a busca pelo conhecimento, mas também um instrumento de transformação social, e poucas áreas ilustram isso tão bem quanto o cuidado com os raros.

Este texto foi originalmente publicado em The Conversation.

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