O dia em que não coletei um cérebro de golfinho

1 day ago 4

Sou neurocientista e trabalho com cérebros de golfinhos e baleias. Por força do hábito, 99% das histórias que conto envolvem momentos inusitados vividos para coletar esses cérebros para estudos de neuroanatomia comparada, como já contei antes por aqui. Mas hoje, conto sobre o dia em que eu não coletei um cérebro.

Certa manhã, eu tomava café antes de sair de casa quando recebi uma notificação no grupo de WhatsApp do Instituto ORCA, ONG que há mais de 30 anos cuida da vida marinha nas praias do Espírito Santo: um golfinho nariz-de-garrafa estava encalhado na praia da Boca da Baleia, em Anchieta, no litoral sul capixaba. Sabe aquele golfinho que nos vem à cabeça quando pensamos no SeaWorld ou nos filmes da sessão da tarde, tipo "Winter" ou "Flipper"? Era um desses.

Por anos participei de resgates em que o animal já estava morto, e assim era possível coletar o cérebro para estudo. Nesse dia, porém, o animal estava vivo —seria uma experiência única não só por ampliar minha compreensão sobre o comportamento desses animais, e consequentemente enriquecer minha linha de pesquisa, mas também por me fazer refletir sobre outro aspecto que caminha lado a lado com o meu trabalho: a conservação de mamíferos aquáticos.

Ao chegarmos à praia, uma ONG parceira, o IPCmar, já monitorava o animal. Constatamos que ele estava vivo, forte e responsivo, embora desorientado, possivelmente por estar em águas rasas. Não havia, à primeira vista, uma causa evidente para o encalhe. Como ele já tentava retornar sozinho ao alto-mar, primeiro tentamos a reintrodução, ajudando-o a voltar às águas profundas.

Não deu certo: devido a sua desorientação, ele voltou para águas rasas e se chocou contra enormes aglomerados de corais. Nós nos aproximamos. Passamos a cuidar do animal, agora com ferimentos visíveis: tratamos as lesões, aplicamos pomadas cicatrizantes e medicações, coletamos amostras para análises, e esperamos que ele se acalmasse. Nosso Flipper parecia pronto para uma nova tentativa de reintrodução.

Dessa vez, mudamos a estratégia: iríamos nós mesmos levá-lo para águas mais profundas, pois, por se tratar de uma espécie oceânica, poderia mais facilmente encontrar seu grupo e seguir seu caminho. Mas para isso precisávamos de ajuda extra, e ela veio das pessoas que assistiam ao resgate. Um senhor, dono de barcos para turismo, ofereceu suporte. Atamos o golfinho à lateral do barco, que partiu em direção ao alto mar. O animal agora nadava com energia extra, praticamente "galopando" conforme pegava impulso e profundidade. Soltamos. De novo foi uma tentava frustrada, e dessa vez em um tom mais dramático: ele encalhou novamente, num trecho de difícil acesso da praia.

Pegamos, então, o jet ski. Quando o avistamos, rolando entre os corais, meu estômago embrulhou. Como cientista, estou acostumada a lidar com a morte, afinal o cérebro retirado desses cetáceos é meu objeto de estudo. Mas ali, em meio àquela água turva e vendo o animal sangrar, não havia hipótese ou protocolo científico, só o instinto: o dele de sobreviver, e o meu de salvá-lo. Não pensei duas vezes: nadei até ele com um dos veterinários. Protegi o ventre do animal com meus próprios pés. Ele saiu ileso, meus pés, nem tanto.

Mais uma vez acalmamos o golfinho para uma terceira tentativa de reintrodução, ainda de barco, mas agora para uma profundidade ainda maior, rumo à arrebentação, na esperança de que ele enfim encontrasse seu caminho. Soltamos. Esperamos. E, dessa vez, após cerca de oito horas de trabalho, ele seguiu.

Casos de reintrodução bem-sucedidos são raros. A sensação de salvar um animal que inspira a minha jornada profissional há tantos anos é única, e viver esse momento de aproximação, empatia, cuidado e respeito com a vida animal é extraordinário.

Seguimos monitorando a praia por dias. Nenhum novo encalhe: ele seguiu seu caminho. Já eu ganhei cicatrizes e mais uma boa história para contar. Mas dessa vez, a do golfinho que eu salvei, cujo cérebro eu não coletei.

*

Kamilla Souza é bióloga e pesquisadora da Rede Brasileira de Neurobiodiversidade/ UFRJ.


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