Há um desequilíbrio sobre a informação que consumimos. Somos por demais educados apenas em metade dos saberes da vida. Sobre a outra metade do mundo, somos intelectualmente indigentes.
Brasileiros sabem o significado da palavra bitcoin, mas não fazem ideia do que seja um Gurufim, ritual tão importante e fundador de nossas raízes culturais. Por conta do ofício de jornalista, pude viver em muitos países e escolher por equilíbrio educativo. Assim, em 2014, fui parar no Irã. E vi suas surpresas que ensinam.
Cheguei em uma movimentada noite de quarta-feira a Teerã, mistura de São Paulo com uma Xangai Blade Runner cosmopolita. Na primeira caminhada pelas calçadas da capital, um susto: vindo em minha direção, um grupo de quatro judeus em alegre conversa. A comunidade judaica no Irã é uma das mais antigas do mundo, com uma presença contínua que remonta a mais de 2.500 anos, desde o exílio babilônico. Concentram-se justamente nas cidades bombardeadas por Israel recentemente. Na capital, são mais de 30 sinagogas ativas.
A primeira caminhada noturna ainda me trouxe surpresas óbvias (todos os gatos de rua são gatos persas) e outras não tanto: há mais "lojas revendedoras" da Apple do que em Nova York. Não são oficiais, trata-se mais de uma colab com a China, responsável também pelo metrô da cidade, tão moderno quanto o que eu veria em Tóquio, anos depois. Nas vitrines das lojas de roupas, lingeries que, por sua ousadia, fariam Anitta ou Madonna gastarem até o limite do cartão de crédito.
E assim foram os meses, com visitas ao Museu do Cinema Iraniano, maior que a maioria dos que vi em países ocidentais; à Universidade de Artes, uma das maiores do mundo, porque lá é um dos poucos lugares do mundo onde essa carreira paga bem. Motivos: 1) é incessante e infinito o trabalho, por todo o país, de restauração de tudo o que foi destruído por 500 anos de ocupação árabe, no século 7°. Aprendi, também no susto, que o ressentimento que achamos que os iranianos, como povo, têm de judeus na verdade é com os árabes. 2) É no Irã que ficam os inestimáveis sítios de Pasárgada e Persépolis.
A Pérsia também nos deu o poeta Ferdowsi, um dos maiores do mundo. Seu "Shahnameh, Livro dos Reis", com seus 50 mil versos, inspirou quase todas as lendas nórdicas e a trilogia "Senhor dos Anéis", posto que Tolkien era um especialista na cosmogonia que veio do povo ariano original. O país se chama Irã antes de se chamar Pérsia, porque seu povo é o povo ariano original. Os europeus se apropriaram do significado e o distorceram, passando a imputar-lhe a ideia de uma raça superior. A cultura iraniana nunca aderiu a esse conceito.
No Irã vivi e me eduquei. Houve encontro e entrevista com uma jovem ativista feminista que só aceitou começar a conversa depois de sacar um tablete e me informar que apenas no Sudeste do meu país houve naquele ano mais feminicídios do que em todo Irã no mesmo período —e que não entende o fato de não irmos às ruas como elas vão, quando dá.
Fui ao show de uma banda cover onde jovens de 18 anos tocavam Nirvana e bebiam álcool, proibido. Para sobreviver, o Estado finge que não vê muita coisa.
O Irã é governado por uma turma com um discurso muito parecido com o de gente como Silas Malafaia. Gritam como ele. Bradam ódio a um útil inimigo. Mas, assim como o Brasil não se resume ao pastor e seus seguidores, o Irã não é o aiatolá e seus mulás (nem antes do xá Reza Pahlevi).
A cultura é sempre maior que a transitoriedade dos governos. É uma tragédia ontológica, e ancestral, confundirmos cultura com governos. E talvez tudo comece com esse erro, essa deseducação.
A cultura que contempla apenas um lado é apenas superfície domesticada.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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