Irritado com um daqueles mega-congestionamentos de Los Angeles que afetam igualmente os super-ricos e os remediados, Elon Musk tem uma ideia: uma rede de túneis que permitiria aos carros rodar por baixo das cidades. Anos depois, o fiasco da iniciativa serve como anedota da participação errática de empresas na construção dos futuros das cidades.
O geógrafo canadense Paris Marx esteve no fim de semana passado na Feira do Livro de SP e autografou seu livro "Estrada para Lugar Nenhum". Nele, há dezenas de casos como esse. Empresários que não andam a pé e fogem do transporte público sempre encontram financiamento para suas ideias geniais: o carro voador e o autoguiado, as patinetes e as bicicletas dockless, os aplicativos e os robôs-entregadores.
A questão é que nenhuma dessas ideias questiona o modelo de cidade, historicamente baseado no transporte individual. O financiamento público americano que bancou a expansão da indústria automobilística na década de 1950 também criou o ecossistema que permitiu a expansão das grandes empresas de tecnologia que hoje –e aqui vai a contradição– são as paladinas das soluções individuais.
O dinheiro ilimitado transforma as big techs em grandes agentes não apenas nas áreas de tecnologia em si, mas na transformação urbana. O Google quase conseguiu emplacar um novo bairro na cidade canadense de Toronto, em que ninguém precisaria ter automóvel, mas todos teriam que assinar seu pacote de serviços e ceder seus hábitos pessoais ao escrutínio do algoritmo. A iniciativa foi barrada pelos cidadãos, desconfiados dos interesses privados correndo à solta no espaço público.
Essa é a reflexão que fica da leitura: como garantir que o interesse público fale mais alto que o modelo de negócio focado nos segmentos mais ricos da população?
A resposta está justamente num planejamento que junte habitação e mobilidade e não perca de vista a diversidade social das cidades: participação popular na aprovação de ideias, foco no transporte público aliado à mobilidade ativa e espaço público de qualidade. Calçadas, comércio, áreas verdes, redução do espaço para os carros e segurança, como na Paris dos 15 minutos, ainda são a base da urbanidade.
O livro talvez se alongue demais na descrição dos cases e pouco nas soluções, mas faz pensar em como a gestão pública pode fazer a diferença. No Brasil, vemos prefeitos pensando em smart cities enquanto cidadãos esperam horas por um ônibus que não chega.
Também dá para pensar no efeito deletério do tipo de urbanização baseada em condomínios, cada vez mais comum. Ao segregar e murar grandes áreas de moradias, os municípios médios diminuem a densidade demográfica, distanciam os consumidores dos serviços urbanos, aumentam o custo das redes de luz e água e estimulam o uso do carro para quem tem, enquanto submetem o resto ao transporte errático ou alternativas, como a moto, mais inseguras.
A solução, claro, está no incentivo ao transporte público e na mobilidade ativa. Não dá mais para fugir à discussão sobre a qualidade do ônibus e do subsídio para quem precisa, como a Tarifa Zero. Uma cidade se torna saudável quando valoriza o espaço público, permite que todos se desloquem em segurança e estimula a urbanidade. Se a tecnologia trabalhar a favor disso, melhor ainda.