Ópera, réquiem, sinfonia e samba são sonoridades que dominam a cena cultural

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Contam-se aos milhares as encenações de "Don Giovanni" desde a estreia, pouco antes da Revolução Francesa. Nem por isso ficou fácil representar a grande ópera de Mozart. Mormente em tempos de MeToo.

Como montar uma obra que começa com um estupro e, para complicar, avança ao som de música genial? É inviável fazer do bandido um bom de bico de lábia aveludada: Don Giovanni não seduz, viola. Só na Espanha suas vítimas foram 1.003.

No Theatro Municipal, o encenador Hugo Possolo recorreu a um tratamento de choque. Traduziu os recitativos do italiano para o português, fez personagens declamarem o "Don Juan" de Molière, cortou e enxertou diálogos, fez do palco picadeiro.

Seriam insolências bem-vindas —se desse para entender as falas em português; se Molière não se atracasse com Mozart; se fosse mesmo essencial Leporello pedalar uma bicicleta; se a inconcebível Zerlina não o chamasse na chincha: "Respeita as mina!". Humm...

Bombas nazistas derrubaram a catedral de Coventry, do século 14, na Inglaterra. A igreja que tomou o seu lugar foi inaugurada, em 1962, com "War Requiem", missa laica para orquestra e coral de Benjamin Britten, o mais conhecido compositor inglês. O Municipal tocou-o no começo do mês, mas foi efêmero: duas apresentações.

Homenagem aos 385 mil ingleses mortos na Segunda Guerra Mundial, o réquiem é um monumento musical: requer duas orquestras e dois coros. A grandiosidade comove, mas os poemas de Wilfrid Owen, entoados por solistas, tiram o fôlego.

"Hino à Juventude Condenada", por exemplo, parece falar de Gaza ao tratar da guerra de 1914 a 1918. O poema diz que os sinos não dobram para os que morrem como gado, e escuta-se o rápido ratatá de fuzis gaguejantes, o coro estridente de bombas obscenas. Owen lutou na Primeira Guerra e tombou uma semana antes do armistício. Tinha 25 anos.

Em 1907, quando conversou em Helsinque com o compositor finlandês Sibelius, Mahler lhe teria falado que "a sinfonia deve ser como o mundo, deve abranger tudo". Difícil crer que tenha dito isso: é impossível à musica abraçar o todo.

Ouvir ao vivo a "Sinfonia nº 3" de Mahler, no sábado (21), abalou a suspeita: ela aspira ao absoluto. Com uma hora e meia, o dobro do habitual, orquestra colossal, coro infantil e feminino, poema de Nietzsche e canção folclórica, ela mimetiza marchas militares, o canto dos pássaros, bailes, movimentos do cosmos e da alma.

A "Terceira" exalta, entristece, ensimesma, alegra, raciocina, expande a consciência. Não abarca tudo, mas tem um tanto do tumulto do mundo.

O Coral da Baía de Tampa e a Sinfônica de Sorocaba apresentaram na Catedral da Sé, no domingo (22), o "Requiém" de Mozart. Reprisado vezes sem conta, não perde o esplendor. Mas há sempre uma primeira vez.

Comparado com o trecho que vai do metrô à Sé, o pátio dos milagres de "Os Miseráveis" é o Palácio de Versalhes. No sermão, o padre disse que não se deve temer o cancelamento dos outros, mas o de Deus. O interior da catedral é opressivo: colunas grossíssimas para uma nave estreitérrima. Sua acústica deixaria Mozart apoplético.

Em boa hora, estreou, na terça (24), na HBO Max, "Os Afro-Sambas", documentário de Emilio Domingos que recoloca em circulação o disco do mesmo nome de Vinicius de Moraes e Baden Powell. Um ano antes do 60º aniversário, o álbum é um ninho de negativas: não é novo nem velho, comercial ou de vanguarda, nem intratável nem abordável.

Em músicas e entrevistas, o filme nega as negações, assevera: afro-sambas fundem pontos do candomblé, cantos gregorianos, atabaque, jazz, berimbau, Chopin. Como a articulação dos sons não busca melodias mercantis, eles têm uma inquietude rara na música popular. O batuque não abafa o tirocínio; em vez de embalar, atiça.

Graças aos orixás, a Exu e a Xangô, o documentário foge de tutoriais tipo "o golpe de 1964 explica etc." Está atento à estética comunitária, retrabalhada por Baden e, sobretudo, Vinicius. Ignorado pela crítica identitária, mas não pelo público nem pelo cinema —vide "Vinicius", de Miguel Faria Jr.—, o branco mais preto do Brasil vive na boca do povo.

Maria Bethânia diz que é difícil definir o talento do poeta de "Canto de Ossanha": "Não sei que homem foi aquele, aquela beleza". Mas percebeu que o seu poder de atração era o de um imã de afeto: "Os corações todos, perto dele, se entregavam; o meu inclusive".

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