Se os sistemas alimentares precisam mudar, por que não mudamos?

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Sabemos que sistemas alimentares precisam de reformas: além de grandes emissores, produzem alimentos que levam a diabetes, doenças cardíacas e hipertensão, que causam a morte de 7,5 milhões de pessoas ao ano no planeta. A produção é suficiente para suprir as necessidades de toda a população mundial, mas 800 milhões de pessoas têm fome.

Talvez a evidência mais emblemática do problema seja a indústria da carne vermelha. Embora o relatório internacional da Comissão EAT-Lancet tenha concluído que precisamos reduzir a produção e o consumo globais em mais de 50% para restaurar a sustentabilidade do sistema alimentar, a previsão é a de que 3 bilhões de pessoas vão ampliar a ingestão de carne nos próximos 15 anos.

Corporações transnacionais como Cargill, Bayer, Coca-Cola, Nestlé, JBS, Unilever e outras controlam a produção e a distribuição de pesticidas, sementes e alimentos e não têm interesse em reformas. Lucros anuais de trilhões de dólares comprovam o sucesso de suas estratégias comerciais e formam uma barreira formidável a qualquer transformação.

A novidade não percebida pelo público nem pelos legisladores é o envolvimento recente de um grupo ainda mais poderoso: bancos nacionais e fundos de investimento e de pensão. No Brasil, os 25 maiores emprestaram US$ 60 bilhões (cerca de R$ 341,8 bilhões) entre 2014 e 2020 à indústria da carne vermelha para apoiar seu crescimento. E compraram mais US$ 3,3 bilhões (R$ 18,8 bilhões) em ações dessas empresas.

O retorno do investimento do mercado financeiro só virá com o crescimento do setor, que aposta na valorização de suas ações. Portanto, não esperem qualquer redução na produção de carne vermelha num futuro próximo.

Esperaríamos que os cientistas fossem os "mocinhos" e fizessem todos os esforços para garantir que os sistemas alimentares passassem pelas mudanças consideradas necessárias para nos colocar no rumo da sustentabilidade. A realidade é mais complicada. Alguns pesquisadores trabalham em estreita colaboração com a grande indústria agroalimentar.

Embora seja difícil calcular a porcentagem exata, estima-se que 76% ou mais das pesquisas relacionadas a alimentos em países com alta renda alta sejam financiadas pela indústria.

Eu diria que esse viés não é a questão mais perigosa. Afinal, outros projetos de pesquisa financiados por fundos públicos existem para restabelecer o equilíbrio das evidências.

O maior risco é o de muitos pesquisadores acreditarem que a solução para transformar o sistema alimentar é a sua própria ciência e a inovação tecnológica associada. O que facilmente esquecem ou decidem ignorar é a atual insustentabilidade do sistema.

Com sua enorme contribuição para as mudanças climáticas, o aumento incessante de obesidade e o verdadeiro tsunami de alimentos ultraprocessados, o sistema é, de fato, resultado de inovações tecnológicas e pesquisas recentes.

Assumir que a inovação tecnológica se tornará subitamente sustentável e resolverá o problema me parece uma posição ingênua. No entanto, é a posição que muitos pesquisadores parecem adotar.

Do seu ponto de vista, colocar a ciência e a tecnologia no centro do processo de transformação do sistema alimentar garantiria que fossem vistos como os principais atores e salvadores, garantindo atenção e apoio necessários para continuar suas pesquisas.

Em suma, o sistema está aparentemente engessado em uma dinâmica que não deve mudar no curto prazo, a menos que os diferentes impulsionadores dessa dinâmica sejam expostos e questionados pelos meios de comunicação.

E a menos que nós, consumidores, continuemos a exercer pressão sobre governos, indústria, mercado financeiro e instituições de pesquisa através dos diferentes canais de governança de nossas sociedades, incluindo a escolha diária do que comemos.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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