Nas séries de TV e filmes, os médicos-legistas são sempre ou mulheres muito bonitas ou homens velhos tolos, que vão à cena do crime vestindo roupinhas normais quando deveriam estar de macacão de proteção. A constatação é do belga Philippe Boxho, ele próprio um médico-legista e professor com mais de 30 anos de experiência.
Por ter lugar de fala, Boxho se queixa de que a ficção distorce a imagem da classe. "Somos pessoas normais", afirma em entrevista por email à Folha.
Ele é autor de "Os Mortos Também Falam – Os Casos Extraordinários de um Médico-Legista", que chega ao Brasil depois de mais de 1 milhão de cópias vendidas na França. As histórias curtas têm ares de crônica e misturam "true crime" e memórias para falar daquilo que Boxho mais entende na vida: cadáveres.
"Meus livros foram escritos com o objetivo de tornar minha profissão conhecida, mostrar sua utilidade ao público. Nossa profissão é mal compreendida. Na Bélgica, o número de médicos-legistas caiu pela metade em 20 anos. Já não somos em número suficiente e o governo não se importa", reclama Boxho.
O objetivo inicial de sua obra, de ganhar apoio e reconhecimento das autoridades, ainda não foi atingido, mesmo depois de três anos do lançamento do primeiro livro.
O êxito de público do livro é "totalmente inesperado", na sua concepção. Na verdade, nem a própria curiosidade do público por crimes violentos tem explicação para ele. "Não penso nada, apenas constato. Mas todos somos atraídos por aquilo que foge da rotina e da banalidade."
A linguagem acessível e a narrativa instigante, por sua vez, o autor atribui à necessidade. "Meu público inclui estudantes que, muitas vezes, não têm nenhuma formação científica. Desde que me tornei professor universitário, precisei simplificar os termos que uso e tornar compreensíveis os métodos científicos que descrevo."
Longe da mistificação das telas, Boxho é um homem que trabalha sem horários fixos e precisa ter disponibilidade total nos dias de plantão. Em um turno normal, é convocado a ir até onde um corpo está, examiná-lo e, se não houver nada de anormal, encerrar o caso. "Se houver algo suspeito, aviso ao procurador, que decide se será feita uma autópsia."
A seu ver, o trabalho o lembra diariamente de que a morte existe. "Todos nós sabemos que vamos morrer, mas para a maioria das pessoas isso é um conceito. Para mim, é uma realidade. Eu vejo os mortos. Isso me ensinou a aproveitar a vida, a valorizar cada dia, sempre com respeito ao próximo."
Em três décadas de carreira, ele lembra, os casos que envolviam crianças foram os mais marcantes, especialmente aqueles de vítimas com idades que regulavam com as de seus filhos. "É inevitável se colocar no lugar, e isso é difícil de lidar."
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Ao contrário do que sugerem as produções do cinema e TV, nem sempre é possível demonstrar as causas da morte de alguém. Boxho diz que há casos em que não se chega a resultado algum, especialmente quando os cadáveres estão em estado de decomposição. "A putrefação apaga traços e indícios que poderiam nos permitir determinar a causa da morte."
Mesmo com a repercussão positiva de seus livros, o médico afirma que sabe que não se deve "subir no salto". Fala que tem plena consciência de suas limitações e diz que foram vários os erros ao longo da carreira.
"Um deles foi ao identificar um caso como estrangulamento porque havia uma marca na traqueia. Na verdade, era uma marca de intubação feita durante uma tentativa de reanimação. Eu não estava ciente da intervenção dos socorristas, e as duas situações podem deixar marcas semelhantes. Aprendi a sempre questionar e verificar as informações ao redor do cadáver."
Casos que poderiam ser vistos como sensacionalistas, garante Boxho, ficaram de fora de todos os seus livros: atentados jihadistas, o desabamento de um prédio com 14 mortos, a explosão de um posto de gasolina e assassinatos de crianças. "Tratei de todos eles como legista. Não falo deles porque meu objetivo é mostrar a medicina legal do dia a dia, não fazer disso um espetáculo."
Aos 60 anos, Boxho relembra em "Os Mortos Também Falam" a época em que, aos 18, decidiu que se tornaria padre. Acabou ateu, e lamenta ter perdido a fé porque vê beleza na esperança. Para ele, a morte decreta o fim absoluto, e não há nada depois dela. "Morremos, e é só isso."