Terapeutas digitais que falam para o paciente se matar

2 weeks ago 8

O uso de IAs em tentativas de replicar sessões de psicologia explodiu, criando o maior experimento natural sobre o endereçamento de demandas íntimas de que se tem notícia. Alunos de psicologia passam meia década debruçados sobre as principais diretivas teóricas existentes, sob a premissa de que o rigor metodológico determina o sucesso terapêutico.

Muitas dessas linhas partem de prerrogativas irreplicáveis por softwares. Carl Rogers desenvolveu uma abordagem que se pauta pela qualidade da relação e por autenticidade. A Gestalt-terapia dá ênfase às manifestações espontâneas durante a sessão, sendo muitas delas não verbais. Já a psicanálise incorpora silêncios e associações que cortam através de meses ou anos de análise, além do redirecionamento "transferencial" de afetos e desejos.

Algoritmos, em contrapartida, não são autênticos ou espontâneos, não fazem leitura corporal, não processam silêncios, não têm memória suficiente para resgatar aquilo que o paciente falou há mais de três sessões e carecem da presença necessária aos processos transferenciais.

Qual a razão de fazerem tanto sucesso? Será que essas premissas todas são um grande fetiche, ritualizando desnecessariamente o papel dos confidentes, agora exercido pelo ChatGPT?

Esta pergunta possui resposta empírica. Fobias rescindem pela prática da exposição gradual; o transtorno de personalidade borderline é especialmente sensível à terapia comportamental dialética; estresse pós-traumático responde a uma técnica que explora o movimento dos olhos e assim vai. Se as abordagens fossem supérfluas, os resultados seriam sempre os mesmos.

Por outro lado, basta ler os fóruns dedicados à IA como terapeuta para notar que seus atributos vão além da disponibilidade contínua e baixo custo. Em termos imediatos, a chave está nas respostas que confirmam e expandem o ponto de vista do cliente e nas explicações convictas sobre o incerto. Agora, o que permite esta chave rodar na fechadura é a fantasia da máquina como uma espécie de guru racionalista: isento, preciso e onisciente.

É raro alguém começar como "paciente" da IA. As pessoas ascendem a este papel pela contínua ampliação do escopo das inquietudes compartilhadas. O tratamento sistemático das questões mais sensíveis é a última fronteira de uma interação que começa na consulta enciclopédica e termina com o sujeito terceirizando para o software a decisão de se divorciar, coisa que psicólogo algum assumiria, exceto se lhe faltasse um parafuso.

A confiança construída durante este processo não pode ser subestimada. É ela que explica por que muitos tentam o suicídio por recomendação de IAs com alucinações. Porém é preciso lembrar que o relacionamento sistemático com um guru não o converte em psicólogo, como vem sendo dito, mas em "life coach": seus objetivos atingidos com meia dúzia de hábitos e um provérbio chinês.

E se tem uma verdade profunda revelada pelo triunfo deste papel maquínico —tal sendo o resultado do experimento natural aludido— é que a grande maioria não está interessada em conhecer nada mais profundo sobre si mesma e menos ainda em enfrentar o que torna sua maneira de viver dolorosa e disfuncional. Tudo o que almeja são explicações objetivas sobre o inefável e algumas certezas inabaláveis para poder seguir tranquila até o próximo prompt.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

Read Entire Article