Órgãos dos governos federal, estadual e municipal estão comprando carne de tubarão em grande escala e servindo-a em milhares de escolas, hospitais, prisões e outras instituições públicas do Brasil, revela investigação do site Mongabay. O consumo de tubarão, chamado comercialmente de cação, está associado a problemas ambientais e de saúde pública.
Foram rastreadas 1.012 licitações para a compra de 5.400 toneladas de carne de tubarão, avaliadas em pelo menos R$ 112 milhões. Realizadas desde 2004, essas compras públicas abrangem 542 municípios em dez estados. Apenas as licitações com empresas vencedoras foram incluídas no levantamento.
Milhões de crianças provavelmente foram alimentadas com carne de tubarão por meio do Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar), incluindo bebês e crianças em seus primeiros anos de vida, em mais de 1.000 creches e pré-escolas, além de detentos em 92 prisões do estado de São Paulo, 43 mil policiais militares do estado do Rio de Janeiro e pacientes em dezenas de hospitais e outras instituições, mostram os documentos.
A carne de tubarão é rica em toxinas de metais pesados como mercúrio e arsênio, que representam riscos à saúde, sobretudo para crianças e outras populações vulneráveis.
Mas, como a carne de tubarão é embalada e vendida no Brasil sob o nome genérico cação, os brasileiros que a consomem tendem a não saber que tipo de peixe é, mostram pesquisas. O país, que não proíbe a comercialização, é o que mais consome a carne de tubarão no planeta.
Além dos riscos para a saúde humana, é preocupante o fato de o número de tubarões ter despencado devido à sobrepesca.
As populações de tubarões em alto mar reduziram cerca de 71% de 1970 a 2018, tornando-os um dos grupos de vertebrados mais ameaçados do mundo. A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) classifica 16 das 31 espécies de tubarões e raias que habitam o mar aberto como criticamente em perigo ou em perigo.
Os comercializadores de carne de tubarão argumentam que as preocupações com a sustentabilidade são exageradas porque a indústria depende, principalmente, de tubarões-azuis (Prionace glauca), que são mais férteis do que outras espécies. Conservacionistas contestam esse argumento e afirmam que a pesca de tubarões-azuis em grande escala é insustentável ao longo do tempo.
Especialistas que revisaram os dados das licitações compilados pela Mongabay disseram que, como os órgãos governamentais solicitam cação, é impossível dizer se estão adquirindo tubarão-azul ou uma espécie que esteja mais ameaçada.
"Se é apenas ‘cação’, realmente não sabemos o que é", afirma Chris Mull, que pesquisa o comércio global de carne de tubarão em projeto da Universidade Dalhousie, no Canadá. "Então, é quase impossível dizer a) se é legal ou ilegal, ou b) se é sustentável ou não."
Análises de DNA mostraram que o cação à venda no Brasil é, frequentemente, de espécies ameaçadas e que a rotulagem incorreta também é generalizada, com uma espécie frequentemente vendida como outra não apenas no Brasil, mas também nos EUA, Reino Unido, Austrália e em outros países.
Funcionários do governo por trás da maior compra que encontramos —600 toneladas de cação para 2.250 escolas no Paraná— disseram à Mongabay que não sabiam qual espécie haviam recebido. Quase todas as licitações municipais e estaduais registradas no banco de dados pediam simplesmente cação, em vez de qualquer espécie em particular.
"Eles deveriam ter a responsabilidade de proteger um grupo de espécies, mas as licitações são feitas de uma forma que nem sabemos se estão comprando e servindo espécies ameaçadas para as crianças", avalia Nathalie Gil, diretora da Sea Shepherd Brasil. "E se você colocar no caldeirão o lado da contaminação, o fato de você estar dando toda semana uma carne contaminada para as crianças, é super absurdo."
No Brasil, a proteína de tubarão encontrou seu caminho nas refeições escolares, avalia Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
"Em algum momento, [os nutricionistas] resolveram recomendar para todo mundo: 'Olha, merenda escolar, para não ter problema com criança, com espinha engasgada na garganta, comprem esse tipo de carne. Houve uma decisão e criou-se uma cultura no Brasil", diz Agostinho, que assinou várias licitações de carne de tubarão quando era prefeito de Bauru (SP) em meados de 2010.
Agostinho afirma ter enfrentado "resistência enorme" de nutricionistas quando tentou questionar a compra de carne de tubarão e de raia para refeições escolares no seu mandato, de 2013 a 2016.
"Os processos de compra chegam para o prefeito assinar quando estão prontos", diz Agostinho. O preço também foi um fator, avalia, porque comprar um produto mais caro, quando um mais barato está disponível, poderia atrair o escrutínio de auditores.
Embora a ausência de espinhas seja um chamariz, os tubarões são ricos em contaminantes como mercúrio, devido a um processo chamado bioacumulação. Isso ocorre quando um animal come outros animais, que, por sua vez, comeram outros animais e assim por diante. Certas substâncias químicas absorvidas ao longo de suas vidas acumulam-se nos predadores no topo da cadeia alimentar.
O órgão de administração de alimentos e medicamentos dos EUA (FDA) e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) estabelecem o limite de mercúrio na carne de tubarão de 1 miligrama por quilograma, seguindo as diretrizes da Organização Mundial da Saúde; acima desse patamar, o produto pode ser recolhido.
Mas enquanto a FDA adverte adultos a consumir carne de tubarão apenas com moderação, e crianças pequenas, grávidas e lactantes a evitá-la totalmente, o Ministério da Saúde recomenda cação para crianças pequenas e bebês. O guia alimentar do ministério para crianças menores de 2 anos destaca a falta de espinhas, mas não faz menção a contaminantes.
As regras das licitações brasileiras permitem que órgãos governamentais solicitem testes de laboratório para metais pesados, mas não é obrigatório. Apenas poucas licitações analisadas pela Mongabay explicitamente requereram tais testes.
Uma licitação de 2023 para alimentar a equipe da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), com 43 mil policiais, especificou que cada oficial deveria comer um total de 3 kg de cação ao longo de 10 refeições por mês por um ano. Uma licitação de 2024 estabeleceu a quantidade em 2,3 kg por mês.
Procurada, a PMERJ não respondeu.
A Sea Shepherd tem pedido a proibição de todas as compras institucionais de carne de tubarão. O deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), líder da bancada ambientalista na Câmara, propôs uma lei para proibir a aquisição em instituições federais. O projeto está parado na Comissão de Meio Ambiente.
"O projeto é bem estruturado tanto do ponto de vista da importação como do consumo e trabalha esses componentes, tanto da saúde como do impacto para a espécie", disse Tatto à Mongabay. O deputado, que afirmou ter comido cação ensopado sem saber que era tubarão, destacou que é preciso "provocar" a Câmara para o projeto "andar aqui dentro".
Agostinho, ex-prefeito e presidente do Ibama, disse que apoia uma moratória nas compras de cação até que as populações de tubarões mostrem sinais de recuperação.
A reportagem foi publicada originalmente pela Mongabay. Jacobson reportou de São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; Mendes reportou do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Brasília. A investigação foi apoiada pela Ocean Reporting Network do Pulitzer Center, da qual Philip Jacobson é bolsista.