A armadilha da masculinidade positiva

1 day ago 3

"A gente está muito triste que ele vai embora!", me disse a diretora da creche que meu filho frequenta quando lhe contei que seria seu último mês ali.

"Ele é muito carinhoso", me disse uma das cuidadoras. "E dá os melhores abraços", disse outra.

"Ele é brasileiro", eu respondi, atribuindo a personalidade calorosa daquele menino de dois anos à nossa cultura, que não dispensa um abraço.

"É exemplo", a diretora me disse. "Lembro bem do pai dele durante a adaptação, tão carinhoso. É raro ver pais assim."

Fui tomada de surpresa pelo redirecionamento súbito do elogio que passou raspando pela MINHA parentalidade para acertar em cheio a parentalidade DELE.

Confesso ter andando até em casa cultivando um misto de orgulho e bode. Não que eu não concorde com ela. O pai dos meus filhos de fato é um pai excepcional. Mas, a feminista em mim revira os olhos ao ouvir homens serem aplaudidos por aquilo que as mulheres fazem literalmente todos os dias.

Costumo deixar o misto de sensações passar. Mas, desta vez, resolvi conscientemente deixar o incômodo incomodar. Falamos tanto sobre masculinidade tóxica, sobre pais ausentes, homens violentos, influencers brotando dos esgotos das redes sociais, seduzindo jovens em busca de autoafirmação ao bradar seus discursos ressentidos de superioridade e dominância masculina. Por que então esse gosto agridoce na boca ao ver sendo enaltecidos esses unicórnios da masculinidade: homens protetores, presentes, corretos?

Christian Dunker, psicanalista, escritor e professor da USP, fala sobre o modelo de "masculinidade heróica", baseado no ideal de um "homem herói" que nunca falha, nem demonstra fraqueza. Ele aguenta tudo, não chora e não depende de ninguém. Se torna portanto, isolado, solitário, incapaz de se conectar consigo e com o outro, o que resulta num terreno fértil para depressão e violência.

É pensando nisso que consigo finalmente decodificar meu incômodo com o elogio ao pai presente, protetor, aquele com o qual mãe e filhos podem contar. Seu enaltecimento soa muito como "paternidade heroica", uma idealização que flerta com preceitos bem tradicionais do que entendemos como masculinidade.

Uma pesquisa feita recentemente no Reino Unido mostrou que 43% dos jovens homens não sabem o que significa "ser homem" hoje. E quase metade dos pais de meninos dizem não saber como conversar com os filhos sobre masculinidade.

Hoje vemos dois campos tentando preencher esse vácuo: aquele da masculinidade tóxica —violenta e ressentida— e o de uma certa "masculinidade positiva". Mas me parece que esta segunda, ao invés de realmente ampliar o que significa ser um homem, tende a ser apenas uma versão revisada e mais gentil do que já consideramos ser masculino. Ela se baseia num homem presente, protetor, que faz terapia, que é capaz de abraçar e até de dizer eu te amo para seus filhos meninos. Mas por mais que pareça um avanço, a masculinidade positiva está longe de ser revolucionária.

Sinto que passou da hora de imaginarmos outra coisa. Uma masculinidade que não precise estar sempre sendo nomeada, validada, defendida. Mas principalmente, uma que não parta das mesmas premissas de sempre e que seja verdadeiramente plural.

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