Anteontem 'pagarai'

1 week ago 8

No meio da frase, ao escrever "anteontem", empaquei. "Anteontem" existe? Não tô falando do dia antes de ontem. O dia, tenho certeza, existiu. Estive lá e tenho inclusive testemunhas, um link do "meets" e recibos do cartão de crédito —um quilo de abobrinha e seis águas com gás, no sacolão da rua Veridiana. (Tenho também um roxo na coxa de uma batida do carrinho de uma senhora muito mal-educada quem nem me pediu desculpas, mas precisaria consultar um povo da medicina forense para garantir que o hematoma tem mais que 48 e menos que 72 horas).

Voltando ao assunto, escrevi "anteontem" e senti como se tivesse escrito "memo", "tamo", "somo". Dei um google rápido e sim, surgiram várias frases com "anteontem". Poxa, que interessante. Por que será que "antes de ontem" conseguiu dicionarizar sua versão coloquial e, por exemplo, "memo", "tamo" e "somo", não?

Lembrei de "você", filho de "vosmicê" e neto de "vossa mercê". É como se alguns pedacinhos da língua fossem mais agilizados e conseguissem entrar de penetra no dicionário, enquanto outras turmas ficassem por décadas ou séculos barradas pra fora. "Barrapafó", por exemplo, soa bem, embora "barradas para fora" não seja frase tão usada como "anteontem", para garantir sua dicionarização.

Animado com essa corruptela, pensei, será que já não avançamos a ponto de "antionti"? Não. Nada no google. Tampouco encontrei "depodiamanhã". Faz sentido. O que vem de trás tem tradição, o que está depois de amanhã ainda precisa ganhar seu espaço.

"Pelamordedeus" ou simplesmente "pelamor" já deveriam cair na Fuvest. Assim como "feladasputa". Ou, se quiséssemos maneirar no palavrão, "feladaspu!". Ou, melhor, "fiadaspu"? Dentro dos palavrões, "carai" certamente deveria existir. E, na mesma toada, "caraiomano!" em SP e "caraiovéi" na Bahia.

Bahia, aliás, que transformou "ó, gente" em "oxente" e "oxente" em "oxi". E Minas Gerais, que pegou "Nossa Senhora", foi pra "Nossa", "Nó" e acabou em "Nu"? (Título, aliás, de uma peça do meu pai, Mario Prata, ou "Maprá"?).

Li, ano passado, o belíssimo "Latim em Pó", do Caetano Galindo. O livro traça os caminhos do português, desde a cópula milenar do galego com o latim até os dias de hoje. Termina assim: "Eu aqui me despeço e te digo em bom latim clássico (saluare) mastigado pela plebe do Império Romano (salvare), estropiado pelos celtiberos, desentendido pelos germânicos, tingido pelos árabes (salvar), imposto aos indígenas da América (sarvá) e finalmente alterado pelos padrões silábicos dos idiomas negros africanos:

Saravá.

Seja bem-vinda."

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Ao dar um último google atrás da citação do Galindo, me deparei com uma descrição mais precisa do "anteontem". Não nasceu de uma corruptela de "antes de ontem". É filha de uma linhagem mais nobre, irmã de "antebraço", "anteparo", "antecipar’, "antessala", "anteceder". O que me traz certa culpa por não ter, ao pesquisar melhor, "antecipado".

Não importa. Sigo defendendo a mesma posição. De que a língua escrita se dobre à falada. Nós, que pagamos tanto pau pros americanos, deveríamos ser influenciados pelos "aint", pelos "gonna", pelos "gotta" e todos os outros neologismos que eles criam, o tempo todo, "pagarai". Saravá.

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