"Apocalipse nos Trópicos", documentário que estreou segunda (14) na Netflix, mostra o que já sabíamos: a maioria dos evangélicos votou em Bolsonaro nas eleições de 2018 e 2022 e, muitos deles, estavam entre os acampados em frente aos quartéis e entre os invasores, no dia 8 de janeiro, das sedes dos três Poderes, em Brasília.
A cineasta demonstra preconceito ao incluir "trópicos" no título do documentário. É chique para a elite cultural utilizar o termo "trópicos", pois trata-se de referência ao clássico "Tristes Trópicos", do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. O pai do estruturalismo sustentava que as metrópoles nos trópicos declinam antes mesmo de atingirem seu apogeu. Adoraria perguntar para Petra: a democracia brasileira apodreceu sem ter amadurecido e a culpa é dos evangélicos?
A promessa do documentário é a revelação das razões do engajamento dos evangélicos ao discurso golpista de Jair Bolsonaro. Essa é a razão da escolha do título "Apocalipse nos Trópicos". Apocalipse, o último livro do Novo Testamento, significa "revelação". Porém, a única revelação do documentário é o desconhecimento do universo evangélico pela diretora Petra Costa.
O documentário é uma miscelânea mal costurada de motivações teológicas que estariam por trás do engajamento dos evangélicos no golpe. A primeira explicação teológica é conhecida como Darbismo. Segundo essa doutrina, o retorno de Jesus à Terra seria precedido pelo Armagedon, a grande batalha final do Apocalipse.
A explicação está errada, pois pastores e crentes que adotam essa doutrina são opositores do envolvimento da igreja com a política. Eles acreditam que Jesus levará a igreja para o Céu antes do Armagedon.
Enquanto isso não ocorre, cabe aos cristãos a pregação para a conversão dos indivíduos e não a transformação da sociedade. Logo, apresentar essa crença como motivação para engajamento no golpismo do 8 de janeiro é forçar a barra.
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A segunda explicação para a adesão evangélica ao golpismo bolsonarista é a "teologia do domínio". Silas Malafaia dá voz à essa visão no documentário defendendo que a democracia deveria ser a imposição da vontade da maioria cristã sobre a minoria de "esquerdopatas".
A "teologia do domínio" é uma importação norte-americana recente e pouco conhecida entre pastores e fiéis das igrejas evangélicas. Utilizá-la como elo explicativo para o aumento da presença evangélica na política e para explicar a invasão do 8 de janeiro empata com as teorias da conspiração que empolgam a extrema direita.
A escolha de Silas Malafaia para "revelar" o plano de dominação evangélica foi um caminho fácil para não enfrentar a complexidade política e religiosa do país. "Apocalipse nos Trópicos" ajudaria a entender mais sobre a presença evangélica na política se colocasse em prática o que os antropólogos sabem, desde sempre, no trabalho de campo: não dá para acreditar em tudo que os informantes dizem sobre si mesmos.
Petra Costa revelaria mais sobre a complexidade da participação dos evangélicos na política se ouvisse o deputado Marcos Pereira, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus. Ele comanda com mão de ferro o Republicanos e se opõe ao espalhafotoso Malafaia.
Hugo Motta, presidente da Câmara dos Deputados, e o presidenciável Tarcísio de Freitas pertencem ao Republicanos. Porém, o Republicanos também é ocupante de um ministério no governo Lula.
O "fator apocalíptico" teria valor explicativo se os evangélicos fossem o único grupo da população a embarcar no golpismo. Mas o que dizer dos militares, dos produtores rurais, dos empresários, dos desempregados e dos aposentados radicalizados? Precisaremos esperar por outro documentário da diretora? Sugiro o título bíblico "Gênesis" para investigar quão profundas são as raízes do autoritarismo nos trópicos.