Há 15 anos, um grupo de cientistas fez uma afirmação ousada na Science, uma das principais revistas científicas do mundo: uma bactéria poderia substituir o fósforo por arsênio para sustentar seu crescimento.
Na última quinta-feira (24), editores da Science retrataram esse mesmo artigo e afirmaram que ele era falho. Eles não acusaram os autores do trabalho de má conduta ou fraude. Em vez disso, disseram que foram motivados a concluir um capítulo de um debate científico que agitou instituições de pesquisa e as vidas de acadêmicos que foram submetidos a intenso escrutínio por mídias sociais e blogueiros.
Os autores do artigo discordam da decisão da Science. Os defensores do trabalho, incluindo representantes da Nasa, que ajudou a financiar a pesquisa original, afirmam que a medida está fora das normas que geralmente levam à anulação de um artigo publicado.
"A mudança na política da Science, de retratar publicações de pesquisa devido a uma desconexão entre os dados e as conclusões publicadas, é sem precedentes e derruba os padrões atuais nos campos de pesquisa e científicos", disse Nicky Fox, administradora associada da diretoria de missão científica da agência espacial americana.
Fox acrescentou que a agência pediu à revista para "reconsiderar sua retratação".
Em 2009, pesquisadores coletaram um micróbio do Lago Mono, um corpo d'água salgado e alcalino na Califórnia, nos Estados Unidos.
No laboratório, eles afirmaram que o micróbio poderia substituir o fósforo, um elemento químico essencial para todos os seres biológicos conhecidos, por arsênio, um elemento que é tipicamente tóxico. Se a descoberta fosse confirmada, mudaria as concepções fundamentais dos cientistas sobre a vida na Terra e no Cosmos. Eles nomearam o micróbio GFAJ-1.
Amplificada por prévias da Nasa e da revista, a descoberta ultrapassou o terreno das conferências acadêmicas e revistas científicas.
Após uma entrevista coletiva transmitida ao vivo pela Nasa, a descoberta ganhou a hashtag #arseniclife no então Twitter (hoje, X), que outros cientistas usaram para expressar sérias preocupações com a metodologia e conclusões do estudo. No fim, um consenso científico geral emergiu contra a alegação de que o micróbio incorpora arsênio em seu funcionamento básico.
Conforme as mídias sociais e posts de blogs criticavam os experimentos e os cientistas que os realizaram, a atenção negativa viral passou a se concentrar em Felisa Wolfe-Simon, uma cientista em início de carreira que havia se tornado o rosto da descoberta e era a autora principal do artigo.
A internet e os críticos científicos seguiram em frente, assim como a revista. Enquanto alguns pesquisadores pediam a retratação do artigo, a Science optou por publicar críticas técnicas à descoberta.
Então, no ano passado, a posição da Science mudou. Um repórter entrou em contato com a Science para um artigo do jornal New York Times sobre o legado do caso #arseniclife.
Essa consulta "nos convenceu de que essa saga não havia terminado, que a menos que quiséssemos continuar falando sobre isso para sempre, provavelmente deveríamos fazer algumas coisas para tentar encerrá-la", disse Holden Thorp, editor-chefe da Science desde 2019. "Foi então que comecei a conversar com os autores sobre a retratação."
Por volta dessa época, Wolfe-Simon estava começando a retornar à pesquisa acadêmica após uma longa pausa.
"Eu listei todas as razões pelas quais não estou interessada em iniciar uma retratação", disse ela sobre sua resposta a um email de Thorp em novembro de 2024. "Então nós continuamos a discussão."
Os coautores do artigo concordaram e continuam a defender seu trabalho. A Nasa, que financiou a pesquisa, também enviou uma carta expressando preocupação sobre a proposta de retratação em novembro de 2024 para a Science e sua editora, a Associação Americana para o Avanço da Ciência, de acordo com a cientista Becky McCauley Rench, do programa de astrobiologia da Nasa.
"Estávamos todos de acordo que a retratação era algo absolutamente inapropriado", disse David Draper, ex-vice-cientista chefe e oficial de integridade científica na sede da Nasa, que participou das discussões.
Após reuniões com os autores do artigo e a Nasa, e discussões com o Comitê de Ética em Publicações sobre suas diretrizes de retratação, os editores da Science decidiram nas últimas semanas seguir adiante com a retratação.
Thorp disse que, no passado, artigos científicos eram tipicamente retratados em circunstâncias envolvendo fraude ou má conduta na pesquisa. Mas ele disse que os padrões atuais deixam espaço para que uma revista retrate um estudo com base em erro dos pesquisadores, o que a Science diz ter feito em dez casos desde 2019.
"Se os editores determinarem que os experimentos relatados em um artigo não sustentam suas principais conclusões, mesmo que não tenha ocorrido fraude ou manipulação, uma retratação é considerada apropriada", disse a revista em seu aviso de retratação.
Como justificativa para a retratação, a declaração da Science cita as objeções técnicas publicadas junto com o artigo e as replicações mal sucedidas dos resultados em 2012.
Wolfe-Simon afirmou que ela e seus colegas responderam às objeções técnicas na época. Ela e outro coautor, Ariel Anbar, professor da Escola de Exploração da Terra e do Espaço da Universidade Estadual do Arizona, criticaram as condições dos experimentos de replicação.
Um post separado no blog dos editores da Science também afirma que o experimento original poderia ter deixado as amostras contaminadas com arsênio. "Diante das evidências de que os resultados foram baseados em contaminação, a Science acredita que a conclusão principal do artigo é baseada em dados falhos", diz o post do blog.
Anbar e Wolfe-Simon se opõem ao destaque dessa afirmação no post do blog, mas não na retratação oficial. Eles dizem que também responderam a essa alegação no passado e apontaram para outras linhas de evidência que não dependem dos dados supostamente contaminados. Segundo Thorp, o nível de detalhamento no aviso de retratação é padrão.
Anbar, no entanto, observou sua concordância com uma das conclusões da Science. "Eles foram muito claros de que não houve má conduta."