Aos 100 anos, o aposentado Alfredo de Souza Lima é uma das poucas pessoas que presenciou as duas maiores tragédias climáticas da história de Porto Alegre —as enchentes de 1941 e do ano passado.
Na primeira, quando era adolescente, ele atuou como voluntário e ajudou nos salvamentos. Já em 2024, o policial civil aposentado foi um dos resgatados pelas equipes de busca.
Alfredo completou 100 anos em 30 de junho de 2025, pouco mais de um ano após a tragédia que destruiu o Rio Grande do Sul. A celebração da data, que juntou toda a família, foi no Humaitá, bairro da capital gaúcha na qual mora desde os anos 1960.
Viúvo, o aposentado vive com uma das filhas, a pedagoga Suzana de Souza Lima, 74. Ele também tem outra filha, Silvia Lima Pilla, 72, cinco netos e cinco bisnetos.
Embora tenha dificuldade para ouvir e precise de um acompanhamento diário de um cuidador, Alfredo conversou com a reportagem para relembrar os desafios que enfrentou nas duas enchentes.
A conversa foi intermediada por Suzana, que fez as perguntas para o pai, que respondeu por vídeos. Lúcido, comparou as duas enchentes e explicou que a de 1941 foi menos assustadora que a de 2024. À época, ele tinha 15 anos, trabalhava em uma fábrica de carroceria e morava com duas irmãs na avenida Pará.
"Foi muito alto, mas também foi mais lento [em 1941]. Não foi com essa violência de 2024. E aí tivemos que sair de casa, por dentro da água, em direção ao quarto posto, que depois se tornou a quarta delegacia", disse narrando que a família precisou ser transportada de carroça para a casa de conhecidos em outro bairro.
Depois de um tempo, Alfredo e um cunhado começaram a sair de caíco, uma pequena embarcação de madeira, para resgatar pessoas e retirar estoques de mercados a pedido dos proprietários.
"Íamos passear, íamos socorrendo um ou outro. Um dia, tinham dois ou três homens, pediam para a gente levar eles até um trecho que já não tinha água. Nós levamos para socorrer. Quando alguém queria só ver a enchente, queria ver as águas, aí a gente cobrava um pouquinho", lembra sorrindo.
O cunhado ia à frente do caíco, enquanto Alfredo ia na parte de trás, ambos empurrando a embarcação com uma vara.
O aposentado disse que sua rotina atual é tranquila. Faz fisioterapia uma vez por semana, além de exercícios básicos para pernas e braços, e pedala na bicicleta ergométrica.
Acorda por volta das 7h30, toma café da manhã com frutas, pão e café com leite. Ainda gosta de ler jornais e de ver televisão, especialmente filmes de faroeste. A enchente de 2024 destruiu uma coleção de DVDs que tinha, inclusive.
Esse é uma das memórias ruins que ficaram da tragédia do ano passado. Dessa vez, afirma ele, a água da chuva chegou a uma altura que nunca tinha visto, ainda pior do que em 1941.
Alfredo se refugiou inicialmente no sobrado de uma vizinha por alguns dias, até ser resgatado no dia 6 de maio. Depois, foi levado para um ponto de concentração de resgates em um viaduto. De lá, ele e a filha foram para abrigo no bairro Bom Jesus, onde permaneceram por 14 dias. Ele até perdeu uma prótese dentária no meio da inundação.
"Eu tinha tirado a prótese, porque era tarde. Sempre que eu ia dormir, eu tirava a prótese. Ficou a prótese lá, o vento baixou, a água carregou. Aí uma senhora disse para uma dentista lá, contou a história, e a dentista mandou eu ir lá. Eu fui, ela fez uma prótese completa para mim e me deu. É a prótese que eu tenho até hoje", conta.
Depois de deixarem o abrigo, a família foi morar no imóvel de conhecido em Viamão e, em seguida, na casa de um filho de Suzana.
Voltaram para a residência em que viviam somente no dia 29 de junho, cerca de dois meses após o início das enchentes. A recuperação do imóvel custou R$ 100 mil.
Nada disso, no entanto, abalou Alfredo. "Não senti medo. Estava tranquilo. O que eu ia fazer? Tem que esperar, tem que aguardar, porque as coisas tinham que dar certo."