Do pum

1 day ago 4

"Pum não é engraçado", decretou o produtor, que havia encomendado a série e pagava nossos salários. O conflito entre capital econômico e capital cultural vem desde a Grécia Antiga. Quem tem dinheiro precisa se legitimar através da arte e quem produz arte tem que pagar o aluguel. Sempre uma negociação meio tensa —e se você é um jovem sem filhos e quer se manter íntegro, às vezes vale arriscar o aluguel em nome, digamos, do pum.

A história do episódio era assim: um cara (pense em George Costanza, do "Seinfeld", ou no Agostinho Carrara, de "A Grande Família") vai fazer uma primeira aula de ioga. A professora é linda e rola uma troca de olhares. Ele desenrola seu tapetinho bem na frente dela, todo pimpão. Aí entra outro cara. Tipo um Brad Pitt. A troca de olhares entre o Brad e a professora é bem mais intensa. Agostinho Costanza fica mordido.

Começa a aula. Torce pra cá, estica pra lá, até que o Brad Pitt solta um pum estrondoso. Nosso herói ri e procura estabelecer contato visual com a professora, sentindo que pode ser um "plot twist" no flerte. A bela iogue, contudo, repreende o George Carrara. Diz que na ioga o pum é bem-vindo. É um sinal vital, um sinal da "entrega" do corpo à prática.

Nosso protagonista passa o resto da aula tentando se "entregar", soltar um pum digno de um trompete do Louis Armstrong, de um trombone do Bocato, um pum que faria "a entrega" do Brad Pitt soar como uma gaita de fole tocada por um asmático num velório escocês: em vão. Sai da aula frustrado, deixando a professora e o Brad Pitt numa conversinha toda animada.

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No carro, indo pra casa, borocoxô, para num sinal. Ao lado dele, numa moto, surge uma moça linda. Olham-se. Rola um clima. Ele baixa o vidro —e aí, sem que antecipe e nem tenha como controlar, todas aquelas contrações pélvicas e abdominais surtem efeito. A motoqueira, que aparentemente não compartilha das crenças filosóficas ou fisiológicas da ioga, fecha a cara, acelera e parte.

Essa foi a história vetada pelo produtor, pois "pum não é engraçado". Eu era jovem, impuro e besta. Tinha lido pouco. Não sabia então o que sei hoje. Mais de duas décadas depois, sou visitado pelo que os franceses chamam de "l'esprit de l'escalier", aquela resposta que te acomete só na saída, tarde demais.

Eis o que eu diria: o grande comediante grego Aristófanes, ó, produtor, há mais de 2.000 anos, em "As Nuvens", fez piada de pum. (Aliás, em "Lisístrata", Aristófanes tem piadas com tamanho de pau dignas de "A Praça é Nossa" e "Zorra Total"). Shakespeare, há uns 500 anos, fez piada de pum na "Comédia dos Erros" e nas tragédias "Hamlet" e "Rei Lear" —deve ter mais, isso foi o que eu li. Rabelais é pum do começo ao fim. Dom Quixote tem puns capazes de mover moinhos e derrubar gigantes. Dá pra fazer uma história da literatura através do pum. O grande filósofo russo, Mikhail Bakhtin, aliás, fez algo próximo disso.

Por que pum é engraçado? Porque é idêntico ao riso. É algo reprimido que subitamente emerge das nossas profundezas, com estrépito, burlando o esfíncter —esse superego do baixo ventre. Assim como a boa piada, o pum revela coisas que não gostaríamos que fossem reveladas, pois cheiram mal. Nos lembram da nossa mortalidade, da nossa podridão. O cheiro do pum traz mais verdades do que o cheirinho da madeleine do Proust. Alguém já disse que o drama descreve o mundo como gostaríamos que fosse: a comédia o descreve como ele é.

Infelizmente, à época, eu não sabia nada disso. Fiquei quieto na reunião, a série foi "descontinuada" e todos fomos "desligados". Ficou um clima chato na sala. Um cheiro ruim. Vocês imaginam de quê.

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