Precisamos falar do desmatamento do Pampa

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O Brasil é amplamente conhecido por suas florestas e pela diversidade de vida que elas abrigam. A notoriedade da Amazônia e da Mata Atlântica, somada à concentração histórica de população e poder no Sudeste, moldou a percepção popular —quando se pensa em preservar a natureza, geralmente se pensa em florestas. A legislação ambiental também reforça esse foco, tanto que a regulação no uso da vegetação nativa em propriedades rurais é regida por um "Código Florestal".

Mas isso gera um problema: a dificuldade de reconhecer que o país não é só floresta. Biomas como Pampa, Cerrado, Caatinga e Pantanal têm também vegetação não florestal, igualmente rica e ameaçada. Ainda assim, população, governos e legislação tendem a não valorizá-los e protegê-los tanto quanto as florestas.

O Pampa é o bioma que perdeu a maior proporção de áreas naturais desde 1985, segundo relatório do MapBiomas. Nele predomina a vegetação campestre, marcada pela presença de plantas herbáceas e arbustos, mas com poucas árvores. Hoje, ela cobre apenas 31,3% do bioma, contra 12% de florestas e mais de 45% de agricultura.

Embora represente apenas 2,3% do território nacional, o Pampa abriga 9% da biodiversidade brasileira — mais de 12.500 espécies, muitas delas encontradas exclusivamente nos campos nativos. Um único metro quadrado desse bioma pode conter até 57 espécies de plantas.

No entanto, vastas áreas campestres estão desaparecendo silenciosamente. Lá, o som da destruição não é o de árvores caindo nem dos motores de caminhões carregados de toras. O termo "desmatamento" nem se aplica bem: talvez "descampamento" fosse mais adequado, já que o que está sendo perdido não são florestas vistosas, mas campos naturais.

Muito celebrada pela mídia e por alguns governantes e setores do agronegócio no sul do Brasil, a queda no desmatamento no Rio Grande do Sul – pouco mais de 800 hectares perdidos nos últimos anos – omite o verdadeiro problema: a redução desses campos nativos. A estimativa de desmatamento do MapBiomas quantifica apenas a diminuição na vegetação florestal, sem levar em conta a remoção da vegetação campestre e arbustiva.

A análise da cobertura vegetal e uso do solo do próprio MapBiomas mostra que, desde 2012, o Pampa perde, em média, 140 mil hectares de campos nativos por ano. Os campos que em 1985 somavam 9,6 milhões de hectares hoje foram reduzidos a apenas 6,1 milhões. Se esse ritmo continuar, em cerca de 44 anos não restarão campos nativos no Pampa brasileiro. Atualmente, só 0,5% do bioma está em áreas protegidas.

A transformação desses campos em lavouras de soja, uma das principais commodities do país, é o principal causador dessa perda. Dos mais de 45% do Pampa já ocupados pela agricultura — 8,8 milhões de hectares —, 63% são lavouras e 9% silvicultura. A situação é agravada por brechas legais que permitem considerar áreas invadidas por espécies exóticas, a exemplo do capim-annoni, como "uso consolidado" — termo técnico para áreas modificadas por atividades humanas antes de marcos legais, que passam a reconhecidas legalmente e podem ser mantidas, mesmo que estejam em zonas de proteção ambiental. A brecha é permitida mesmo quando a invasão da espécie é espontânea e reversível por meio de manejo.

Proteger os campos do Pampa significa conservar não só a natureza, mas também a identidade cultural sulina e a sociodiversidade brasileira. Governos, legisladores e sociedade precisam compreender que vegetações não florestais são tão valiosas quanto as florestais, e que o "descampamento" é tão prejudicial quanto o desmatamento. Ao perder espécies e paisagens nativas, perdemos seus serviços e funções que amenizam os efeitos de enchentes, secas e mudanças climáticas, ajudando a própria agricultura a produzir mais e melhor.

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Jeferson Vizentin-Bugoni é biólogo e professor da Universidade Federal de Pelotas, onde pesquisa interações entre espécies, a organização e o funcionamento da natureza, e o impacto das atividades humanas nos ecossistemas.

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