Quem escreveu a Bíblia? Novo estudo usa estatística para tentar responder

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A Bíblia hebraica é lida, estudada e venerada por bilhões de pessoas ao redor do mundo. Mas por trás da reverência, existe uma pergunta que há séculos intriga teólogos, historiadores e arqueólogos: quem escreveu os textos bíblicos e quando? Um novo estudo, publicado em junho de 2025 na revista científica PLOS One, oferece uma resposta ousada, não com base na fé ou na tradição, mas com números, algoritmos e estatística.

O artigo é fruto da colaboração entre especialistas em Bíblia, ciência da computação, física e estatística. Dentre eles, Thomas Römer, um dos maiores biblistas da atualidade e professor no Collège de France, e Israel Finkelstein, o mais influente estudioso da nova arqueologia de Israel.

A Bíblia Hebraica –que corresponde grosso modo ao Antigo Testamento cristão– foi escrita, editada e reeditada ao longo de séculos. Um mesmo capítulo pode conter camadas de autoria diferentes, algumas separadas por mais de duzentos anos.

Isso já era reconhecido pela quase totalidade dos estudiosos que se baseavam em pistas estilísticas, linguísticas e teológicas.

O novo estudo buscou descobrir quais partes da Bíblia foram escritas por grupos de autores diferentes através de uma abordagem científica baseada na frequência de palavras e fórmulas estatísticas para detectar padrões de autoria.

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Para começar, a equipe selecionou capítulos da Bíblia que representassem com segurança três estilos autorais distintos e bem conhecidos dos estudiosos: D (Deuteronômio antigo): capítulos como Deuteronômio 6, 12 e 15, atribuídos a autores do século 7 a.C. DtrH (História Deuteronomista): trechos de Josué, Juízes, Samuel e Reis, que continuam a teologia de D, mas teriam sido escritos ou revisados durante o exílio babilônico no século 7 a.C. e P (Textos Sacerdotais): trechos como Gênesis 17, Êxodo 25 a 31 e Levítico, com foco em rituais, genealogias e regras culturais, geralmente datados do período pós-exílico.

Esses três blocos serviram como padrão de referência para treinar um modelo estatístico capaz de detectar "assinaturas linguísticas" específicas: palavras, combinações de palavras e frequências relativas que caracterizam cada autor ou escola.

Ao transformar os textos bíblicos em grandes tabelas de frequência de lemmas (a forma básica das palavras), o algoritmo passou a comparar outros textos com os três grupos já conhecidos.

O método mostrou que em 84% dos casos foi possível identificar corretamente a autoria do texto testado, coincidindo com o que os estudiosos humanos já haviam concluído.

Ele também destacou as combinações que permitem interpretar porque determinado capítulo foi atribuído a um grupo e não a outro.

Por exemplo, o uso insistente de termos como ouro, tabernáculo e côvado é típico do grupo sacerdotal (P), enquanto a designação de "Deus" como Elohim e expressões de obediência marcam os autores de D e DtrH.

Com o modelo estatístico calibrado, a equipe fez um teste: aplicou a ferramenta a capítulos cuja autoria ainda gera debate. Os resultados foram surpreendentes, mas também coerentes. Por exemplo, o livro de Ester, de provável origem helenística, não se encaixou em nenhum dos três grupos, o que confirma sua natureza tardia e independente. As histórias do patriarca Jacó se mostraram mais próximas de D, sustentando a hipótese de uma origem no reino do norte, antes do exílio.

O que esse estudo demonstra é que métodos da ciência exata como estatística e treinamento de modelos computacionais podem ser usados com sucesso nas humanidades. A análise quantitativa não substitui a interpretação teológica ou histórica, mas a complementa, oferecendo uma ferramenta objetiva e que pode ser reproduzida em outros estudos.

Mais importante ainda: esse tipo de pesquisa ajuda a desmistificar a ideia de que a Bíblia foi escrita de uma só vez, por um único autor ou por inspiração divina direta e ininterrupta. Ela é, como reconhece o próprio estudo, o produto de séculos de tradição oral e escrita, revisada e reelaborada por autores com perspectivas distintas.

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