Os EUA tomavam uma surra no Vietnã, de onde logo bateriam em retirada, mas nisso eu não pensava muito em meus 12 para 13 anos. Estava ocupado em negociar com o mundo as pernas e braços compridos demais, a voz cambiante, minha própria viabilidade social.
Era o segundo semestre de 1974, e o trabalho do meu pai no Banco do Brasil tinha levado a família a se mudar. Arrancado do dito torrão natal – Muriaé, na Zona da Mata mineira –, fui cair na boa Resende, joia do sul fluminense, vizinha de Itatiaia e Penedo e sede da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).
Trocar de escola, amigos, tudo, já era bem difícil. Mas teria trocado de língua também? "Ó o buto!", diziam os resendenses daquela época – bom, diziam pelo menos todos os resendenses com quem eu conversava. E diziam o tempo todo.
"Ó o buto!" era uma interjeição de espanto. Significava caramba, uau, PQP, tá de sacanagem ou coisa assim. Por alguma razão, as pessoas se espantavam muito naquele lugar, naquele tempo.
Prova disso é que havia uma não menos curiosa interjeição sinônima e igualmente usada, "sóco!" (com acento para diferenciá-la do substantivo soco, com vogal fechada). Mas vamos nos concentrar em "ó o buto!".
A expressão sonoríssima e vagamente chula tinha suas nuances. Se bem me lembro, unia a admiração ao seu contrário, ironia-desafio do tipo "vamos ver se você será capaz de comparecer com a prova do portento que acaba de enunciar, justificando minha linda interjeição".
"Ontem eu vi um disco voador", dizia – digamos – alguém. Era moda na época, de vez em quando tinha um que via um disco voador. "Ó o buto!", reagia o outro, adequadamente. E estavam conversados.
O que era aquilo? Uma gíria municipal? Um patoá microrregional? Jargão comunitário lúdico? Tudo isso junto, é provável.
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Não será sempre assim em qualquer tempo e lugar, a língua gerando essas flores do mato que nascem e morrem sem merecer a atenção de ninguém – linguistas, dicionaristas, autoridades, escritores?
Estamos falando de uma microlinguística rasteira, pangaré mesmo, que salvo exceções muito raras jamais chegará aos dicionários – nem os de regionalismos. À restrição geográfica do seu alcance se soma uma limitação temporal.
Às vezes confinadas a um bairro, a uma rua, essas palavras podem também não durar mais que um verão. (Não é o caso de "ó o buto", que tinha saúde para muito mais.) E daí?
Quem precisa de duração, se é justo a fugacidade radical que as faz serem madeleines tão perfeitas, cavando túneis súbitos para grandes reservatórios de memória?
Fui feliz em Resende, contra todas as probabilidades. Hoje me pergunto de que tanto nos espantávamos, os habitantes de uma cidade que era segura, organizada e limpa, como precisava ser para que nela transitassem oficiais do Exército e suas famílias em plena ditadura militar.
Por que tanto pasmo se nem sequer desconfiávamos que naquele momento, logo ali na Aman, um cadete chamado Jair estava a meio caminho de conquistar seu breve oficialato? Quem poderia imaginar que "ó o buto!" fosse profecia também?