[RESUMO] Apesar do público menor, evento em Denver (EUA) reafirma importância da psicoterapia em tratamentos com MDMA e psilocibina para transtornos mentais. Fracasso no ano passado na agência de fármacos FDA abalou, mas não extinguiu fé no potencial de psicodélicos para saúde mental, que acumula evidências científicas, iniciativas legislativas e apoio de políticos conservadores. Outro sinal positivo foi abertura para diálogo com povos indígenas.
A conferência Psychedelic Science 2025 em Denver, de 17 a 21 de junho, começou com o reconhecimento de que a capital do Colorado já foi território dos povos indígenas cheyenne e arapaho.
A atmosfera carregada da reunião foi captada por Rick Williams, da organização local Povo da Terra Sagrada, que fez uma prece e conclamou milhares de pessoas no teatro Bellco do centro de convenções da cidade: "Ouçam, conseguem escutar? Ouçam. Os espíritos estão observando. As plantas de que vocês vão falar têm espírito. Cada uma dessas medicinas tem sua maneira de viver no ambiente", alertou. "Se falharem [em escutar], coisas ruins vão acontecer com vocês."
O agouro indígena soou quase retroativo, dado o contraste do clima reinante com o de dois anos antes. Em 2023 mais de 12 mil participantes haviam acorrido ao maior evento científico-psicodélico já realizado, atraídos pela perspectiva de consagração da psicoterapia apoiada por MDMA (ecstasy) para transtorno de estresse pós-traumático. Coisas ruins aconteceram, e o público encolheu neste ano para cerca de 8 mil participantes.
O revés foi reconhecido, logo a seguir, por Rick Doblin, líder do movimento que deu origem à Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês). Dela nasceram os testes clínicos de fase 3 com MDMA que haviam fracassado na agência de fármacos FDA em agosto de 2024.
Doblin ainda tentou fazer piada com a própria roupa: na PS2023, ele entrou triunfante no palco, todo de branco, e neste ano se apresentou com algum "black and blue" (preto e azul, trocadilho com a expressão inglesa equivalente a "olho roxo") na calça e na camisa, preservando só o blazer e os tênis brancos.
Ovacionado no teatro quase lotado, Doblin se disse arrasado com a decisão desfavorável do órgão regulador ao pedido da Lykos, empresa criada de uma costela da Maps. Lamentou as mortes recentes de dois próceres da ciência psicodélica, Amanda Feilding (1943-2025) e Roland Griffiths (1946-2023). Arrematou com outro fracasso, a rejeição em 2024, num referendo do estado de Massachusetts, à lei que descriminalizaria vários compostos psicodélicos.
O ex-hippie que fundou a Maps em 1986, apenas um ano depois de a MDMA ser proibida nos Estados Unidos, não se deu por vencido. Tem fé de que a fênix se erguerá das cinzas e que a Lykos prevalecerá, cedo ou tarde.
Arrolou boas novas como legislações liberalizantes no estado do Novo México e na República Checa. Saudou o apoio à causa de antípodas como o republicano Rick Perry, ex-governador do Texas, e o democrata Jared Polis, atual governador do Colorado —que anunciou ali o perdão para presos condenados por posse de psilocibina (de cogumelos "mágicos"), substância legalizada no estado em 2022.
No Oregon 10 mil pessoas já usaram legalmente a psilocibina. O governo texano está destinando US$ 50 milhões (R$ 275 milhões) a pesquisas com ibogaína para dependência química. Austrália, Canadá e Suíça já admitem prescrições excepcionais de MDMA ou psilocibina, e Nova Zelândia caminha para isso.
O Pentágono anunciou em março US$ 9,8 milhões (R$ 54 milhões) em estudos psicodélicos para males psíquicos que acometem veteranos de guerra. Esses transtornos dão margem a 18 suicídios de ex-combatentes por dia.
Prosseguem os estudos de fase 3 com psilocibina para depressão da empresa Compass Pathways e do Instituto Usona. A Compass, representada em um dos painéis da conferência, não mostrou ali mais detalhes dos resultados que divulgaria, três dias depois do evento, sobre um dos braços de seu teste clínico: redução média de 3,6 pontos, com 258 voluntários cuja depressão foi medida pela escala Madrs (total máximo de 60 pontos).
À primeira vista parece uma melhora discreta, mas é similar à diminuição de sintomas de 3,4 pontos que levou à aprovação do Spravato, uma escetamina (variante da cetamina, ou quetamina) intranasal da farmacêutica Janssen. O braço maior da Compass, com 568 pacientes, só terá dados anunciados no segundo semestre de 2026.
Além das pesquisas de fase 3, etapas preliminares e a pesquisa básica também avançaram em meio ao anticlímax criado pela FDA. Dráulio de Araújo, neurocientista brasileiro que atuou como revisor de trabalhos inscritos na PS2025, ouviu dos organizadores que o número de resumos submetidos dobrou de dois anos para cá.
Seu próprio grupo no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) apresentou em dois painéis do congresso dados sobre a segurança do psicodélico dimetiltriptamina (DMT) da jurema-preta. Neste caso, o psicodélico foi aplicado por inalação (60 mg) e comparado com placebo ativo (0,6 mg de DMT) em um grupo de 25 voluntários saudáveis, sem depressão.
Numa das mesas do ICe-UFRN, o artigo publicado no periódico European Neuropsychopharmacology constou de apresentação da última autora, Fernanda Palhano-Fontes. Na outra, com o tema "Traçando o Caminho da Ciência do DMT no Brasil: Raízes Históricas e Direções Futuras", atuei como moderador e apresentei uma visão geral do livro "A Ciência Encantada de Jurema", recém-lançado pela editora Fósforo (fui também entrevistado pela antropóloga Bia Labate sobre o livro).
Araújo concluiu o painel contando como sua participação no Seminário Medicinas Ancestrais: Jurema, poucas semanas antes, o motivara a iniciar um diálogo em pé de igualdade com a "ciência da Jurema" praticada por povos indígenas do Nordeste. Foi muito aplaudido.
Há um conflito mal resolvido, de resto, entre o setor de pesquisa com psicodélicos e os povos tradicionais que por séculos ou milênios desenvolveram tecnologias de uso das chamadas plantas mestras, como as usadas na ayahuasca (amazônia) e no vinho da jurema (caatinga). Eles pedem respeito ao caráter sagrado desses vegetais e à própria espiritualidade indígena, que veem ameaçados pelo entusiasmo com a redescoberta dos psicodélicos pela medicina.
O hype, temem, poderia levar à extração indiscriminada dessas plantas da natureza, à perturbação da vida comunitária nas aldeias, com o afluxo de turismo xamânico, e ao aumento de casos graves de efeitos adversos. Suas críticas não raro vêm em termos ácidos, quando não agressivos, como ficou patente no seminário da Jurema e, mais ainda, na 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca, realizada em janeiro no Acre. No congresso de ciência psicodélica houve bem menos animosidade.
Nixiwaka, cacique yawanawa que fora anfitrião da conferência indígena no Acre, dirigiu a pesquisadores um recado conciliador na abertura em Denver. "Convido a comunidade científica a entrar pela porta da frente na nossa casa, não pela janela", disse no teatro Bellco, recorrendo ao eufemismo dedicado a larápios.
Referindo-se talvez à criação de um Conselho de Lideranças Espirituais Indígenas em janeiro, avisou: "Estamos prontos para esse diálogo. A ciência é muito importante para o futuro da humanidade".
No encerramento, foi a vez da artista plástica Daiara Tukano, que também desfilara altivez na conferência indígena, estender a mão a interlocutores na academia. "Estamos há 500 anos tentando ter um diálogo. Chegou a hora de dizer para os cientistas que nós também temos ciência", defendeu. "Reconhecer as ilusões, de modo que possamos aprender a caminhar na verdade. Sem deixar marcas ou lixo atrás."
Reatar relações diplomáticas e até parcerias com povos originários não deixa de ser uma volta às raízes da ciência psicodélica. Afinal, ela foi impulsionada por pesquisadores que tiveram contato com a mescalina do cacto peiote, com a psilocibina dos cogumelos Psilocybe e com a dimetiltriptamina da ayahuasca e do vinho da jurema, todas em uso ancestral por comunidades indígenas.
Para além de um gesto condescendente e politicamente correto (o que se chama de tokenismo), esse ensaio de aproximação com saberes tradicionais pode ser visto também como um dos sintomas manifestados em Denver de que o campo psicodélico busca imunizar-se contra a infecção medicalizante que o prostrou no choque com a FDA.
O sinal mais febril dessa reação veio na defesa enfática da psicoterapia como fulcro do processo de cura de transtornos mentais irresolvidos pelas pílulas da Big Pharma e turbinados pela insegurança climática, geopolítica e no trabalho.
Alguns pesquisadores e muitas empresas passaram a minimizar a importância da psicoterapia após a FDA isolá-la como fio desencapado no circuito da medicina baseada em evidências, variável dada como incontrolável pela falta de padronização e pela ingerência de expectativas subjetivas.
Duas estratégias surgiram que poderiam contornar a dupla cegueira da agência. De um lado, empresas como a Compass passaram a depreciar como mero apoio psicológico nas sessões de dosagem o que no protocolo da Maps/Lykos era um componente indissociável: consultas com psicoterapeutas, antes, para preparação da experiência psicodélica, e depois, para integração (elaboração) dos conteúdos, afetos e vivências por ela desencadeados.
De outro lado, pesquisadores como David Olson, da Universidade da Califórnia em Davis, apostam na modelagem molecular de compostos análogos a psicodélicos que prescindiriam da alteração da consciência. Ou seja, burilar moléculas para que elas mantenham o poder de induzir neuroplasticidade —formação de novas conexões neurais que explicariam o efeito terapêutico— e percam o de provocar viagens lisérgicas, transmutadas no que se convencionou denominar de psicoplastógenos ou neuroplastógenos.
Pílulas para uso contínuo, enfim, talvez liminarmente eficazes contra depressão e outros transtornos, mas incapazes de submeter o paciente a experiências transformadoras. Uma das primeiras a insurgir-se contra a ejeção do componente psicoterápico das terapias psicodélicas foi Rachel Yehuda, da Escola de Medicina Mount Sinai, em Nova York:
"Não acho que a FDA tenha de regular a terapia; eles precisam entender o processo", disse. "Temos a obrigação ética de explicar os elementos que, pensamos, devem estar presentes." Com a experiência acumulada no tratamento de veteranos de guerra, ela não poupou munição ao comparar terapia psicodélica sem psicoterapia com cirurgia sem anestesia.
Já na sessão inaugural da conferência Rick Doblin havia deplorado essa desidratação das terapias assistidas por psicodélicos. A ele e Yehuda se juntaram vozes proeminentes no setor psicodélico, como as de Marcela Ot’alora e Robin Carhart-Harris.
A posição de Gül Dölen, das universidades Johns Hopkins e da Califórnia em Berkeley, é uma das mais calçadas em pesquisa original. Já em 2023 ela eletrizara a audiência de sua palestra sobre como psicodélicos reabrem janelas de aprendizado em animais adultos, uma forma peculiar de plasticidade que parece devolver a humanos a capacidade de reinterpretar ou reescrever os próprios traumas e ruminações.
Dölen principiou por ressalvar que nem toda neuroplasticidade é positiva, dando o exemplo da cocaína, em que formação ou reforço de conexões neurais participam do mecanismo de dependência. Feita a ressalva, disparou em defesa da experiência psicodélica. "Meu palpite é que não será possível reabrir o período crítico [janela de aprendizado] sem o estado alterado de consciência. Poderiam essencialmente estar fazendo algo parecido com a cocaína."
Em favor não só da cocaína, mas de toda e qualquer droga psicoativa, levantou-se Carl Hart, que criticou com alguns palavrões o "excepcionalismo psicodélico que está nos matando", título de sua palestra.
O neurocientista da Universidade Columbia (Nova York) sustenta que não há drogas boas ou ruins, dicotomia criada sem base em evidências que serve para estigmatizar compostos como heroína —da qual, de resto, já se declarou usuário.
Hart projetou slides mostrando como a vilipendiada metanfetamina é quimicamente similar à endeusada MDMA. Afirmou que a dissociação entre elas é artificial e tem finalidade política incompatível com a autonomia individual e a busca da felicidade consagradas na Constituição dos EUA. "O excepcionalismo é uma arma importante para a guerra às drogas."
Denunciou como inconfiáveis estatísticas de overdoses por opioides, que teriam produzido 111.422 mortes nos EUA em 2023. Elas se baseiam em atestados de óbito preenchidos por legistas sem qualificação médica, acusou, com margem de erro de 20% a 30%. Mesmo com a descriminalização da maconha e a reabilitação de psicodélicos, ponderou, o número de prisões por drogas não caiu —e a polícia segue encarcerando negros como ele.
Não falta ambiguidade no renascimento psicodélico. Rick Doblin, que militou contra a Guerra do Vietnã, hoje se alia a políticos republicanos para promover tratamentos psicodélicos a ex-combatentes e inclui na missão educativa da Maps levar MDMA para lugares traumatizados como Ucrânia, Israel, Palestina, Bósnia e Somália —iniciativas que podem bem ser interpretadas como panaceia adaptativa para manter azeitadas máquinas de guerra.
Após perder MDMA para a Lykos e a FDA, a Maps agora financia estudo de fase 2 para tratar veteranos com maconha —o que não deixa de ser outra volta no tempo, por vezes o recurso disponível para quem teve a marcha à frente abortada. Nem tudo é retrocesso, porém. Doblin e companheiros de luta têm razões para algum otimismo com o futuro psicodélico.
Além da possível ressurreição na FDA com a crescente acumulação de dados favoráveis ao tratamento alternativo, da movimentação política à direita e à esquerda em favor de mudanças na legislação, de avanços em países menos problemáticos que os EUA e da rediviva aliança com povos indígenas, o líder da Psychedelic Science 2025 saudou o fenômeno da proliferação de igrejas psicodélicas. Seus adeptos buscam, e em alguns casos conseguem, autorização legal para consumir substâncias rebatizadas como enteógenos, como a Igreja da Águia e do Condor.
O recurso divino para justificar uso e acesso a psicodélicos tem um quê de retorno às raízes, também. Quando a ciência se mostra impotente ou míope para lograr avanços, e quando tecnologias dela nascidas contribuem para desnortear de vez um planeta em crise, a fé originária pode ajudar a manter a bandeira erguida.
O jornalista Marcelo Leite viajou a Denver a convite da Maps e do Instituto Chacruna