Um mapeamento global da resistência a antibióticos favorecida pelas práticas de criação de animais aponta o Brasil como uma das áreas de risco por causa da pecuária bovina, junto com os Estados Unidos e o Canadá.
Os dados, levantados por pesquisadores chineses e americanos, são uma ferramenta importante para monitorar o problema, que já tem aumentado os riscos de cirurgias e internações hospitalares mundo afora.
Para chegar a essas conclusões, a equipe liderada por James Tiedje, da Universidade do Estado de Michigan (EUA), e Xun Qian, da Universidade de Ciências Agrícolas e Florestais do Noroeste da China, analisou amostras de esterco de galinhas, porcos e vacas obtidas em 26 países de todos os continentes.
O foco da análise foram os chamados metagenomas, o que significa que, em vez de "ler" o DNA de indivíduos e espécies isoladas, a intenção era ter uma visão de conjunto de todo o material genético presente nas fezes.
Em meio a esse conjunto de DNA multiespécies, o que os pesquisadores estavam buscando identificar era principalmente a presença dos chamados ARGs (sigla inglesa de "genes de resistência a antibióticos"). Trata-se, em essência, de trechos do material genético das bactérias que aumentam as chances de sobrevivência delas ao ataque de antibióticos.
Isso pode acontecer de diferentes maneiras –uma região do DNA pode conter a receita para a produção de uma proteína que ajuda a bactéria a "bombear" o antibiótico para fora das suas células, ou para fabricar substâncias capazes de fragmentar a molécula de antibiótico em pedaços menores e inócuos, por exemplo. Os genes que conferem resistência também são diferentes para cada tipo de antibiótico empregado, porque as categorias de medicamentos atacam aspectos distintos das células bacterianas.
Dependendo de como os antibióticos são ministrados a uma pessoa ou animal, pode acontecer que apenas as bactérias mais vulneráveis ao medicamento sejam destruídas, enquanto outras, dotadas de resistência natural por causa de alguma mutação no DNA, sobrevivam por tempo suficiente para que voltem a se multiplicar.
Na geração seguinte, a tendência é que a população bacteriana seja dominada por esses micróbios "selecionados" pelo uso incorreto de antibióticos, e, portanto, quando for necessário um novo uso dos remédios, o nível de eficácia tende a cair.
E há ainda outro problema: embora as bactérias não se reproduzam de forma sexuada como os seres humanos, muitas delas são capazes de trocar material genético entre si por um processo que lembra o sexo. Com isso, mesmo que não façam parte de uma população bacteriana que foi selecionada para ser resistente por causa do uso de antibióticos, elas podem acabar adquirindo os genes de resistência ou ARGs.
É claro que isso pode se tornar um problema também no caso dos animais domésticos. Em especial nas criações em escala industrial, eles também recebem antibióticos. O consumo de carne, ovos ou outros produtos derivados deles, assim como o descarte de suas fezes, pode acabar levando ARGs dos micróbios dos bichos para os que estão no organismo humano.
No novo estudo, que saiu no dia 27 do mês passado na revista Science Advances, Tiedje, Qian e seus colegas mostraram que a diversidade de ARGs nas fezes de galinhas, suínos e bovinos inclui praticamente todos os genes de resistência a antibióticos já conhecidos anteriormente. Mais preocupante ainda, essa diversidade também inclui o que os cientistas chamam de ARGs latentes.
A expressão se refere a variantes do DNA bacteriano que ainda não foram identificadas diretamente como fonte de resistência a antibióticos, mas cujas características moleculares, ou seja, a sequência de "letras" do DNA, indica fortemente que eles podem favorecer a resistência aos medicamentos também.
Boa parte das bactérias com ARGs são espécies de nicho ecológico amplo, o que significa que são capazes de sobreviver em diferentes partes do organismo dos animais (e dos seres humanos) e, portanto, teriam mais facilidade para carregar sua resistência de um lugar para outro.
Por causa do uso mais intenso de antibióticos e das práticas de criação mais intensivas (muito mais indivíduos em menos espaço, por exemplo), os ARGs são bem mais abundantes entre os porcos e especialmente entre as galinhas do que no esterco bovino.
Do ponto de vista geográfico, existe uma correlação entre renda per capita dos países e incidência de ARGs (em geral, com maiores rendas per capita, menor a incidência). No caso dos suínos, a diversidade e frequência dos genes de resistência nas fezes é maior na China, enquanto, no caso das aves, países do antigo bloco soviético (Bulgária e Polônia), seguidos pela China, aparecem em destaque.
Os dados devem ajudar no monitoramento do problema e na melhora das práticas agropecuárias. Segundo os pesquisadores, o esterco poderia ser usado como "sentinela" para identificar o aumento da resistência bacteriana que vai se refletir na população humana mais tarde.