Da noite pro dia, quando ninguém tava olhando, as barbearias brasileiras fizeram uma harmonização facial completa. Barba, cabelo e bigode. Foram dormir em Botucatu, Marabá ou Belford Roxo e acordaram em Houston, em Chicago, em Cincinnati ou n’Ohio que as parta.
Por mais de cem anos, os homens iam cortar o cabelo numa espécie de templo luterano. Um ambiente austero. Cadeironas giratórias, mesma proporção de couro e decoro. Luz fria, azulejos, carrinho do lado com tesouras, lâminas e demais apetrechos.
Talvez porque a vaidade e o apuro estético fossem vistos como atributos femininos, a barbearia era um monumento à assepsia. Homens indo ficar mais bonitos precisavam negar a intenção, fingindo estar, sei lá, indo a um quartel ou a um açougue. Tipo: vim aqui cortar o cabelo, mas não quero saber de firula, hein?! (Uma traquitana num canto com luz roxa e grade elétrica fritando quaisquer mosquinhas de alegria).
Até o nome, "barbeiro", tentava desviar do assunto: embora 99% de nós vamos ali aparar as melenas, "cabeleireiro" é coisa de mulher. Da minha juba, cuida um "barbeiro". Se não soasse tão falso, usaríamos até "ferreiro", um cara vindo de "Game of Thrones", cortando meu cabelo com uma adaga incandescente de "aço valeriano".
Pois, após anos de apego à tradição, do nada, os salões de barbeiro amanhecem, certa manhã, metamorfoseados em empreendimentos curiosos: algo entre um pub, um clube dos Hells Angels, um açougue hipster e uma cervejaria artesanal. Do lado de fora, aquele cilindro giratório branco, azul e vermelho, que parece um pirulitão natalino em filme americano. No vidro que dá para a rua, em letra de mão estilizada, preta, prateada ou jateada, "Barber Shop", mais palavras em inglês e o nome da pocilga. Parece tão natural quanto um filtro de barro São João com os dizeres "water fountain" ou um pé de moleque chamado "boy´s foot".
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Dentro do "barber shop", em vez dos velhos senhores com aquela pinta de Amigo da Onça, de Jânio Quadros, de Nelson Rodrigues ou dos garçons do Bar Lagoa, uns jovens barbudos e tatuados, cara de mal, bíceps de marombeiro e pânceps de cervejeiro. Você entra, olha em volta e não sabe se tá ali pra cortar o cabelo ou pra ver um show de uma banda cover júnior do ZZ Top.
"Ah, qual a novidade?", você pode perguntar. É o velho hábito caipira de país subdesenvolvido querer ser os Estados Unidos. Tá, beleza, mas por que o vírus foi inoculado na barbearia e passou batido pela padaria da esquina? Não leio "Bakery" no letreiro de "Padaria Aracaju" e nem vejo, na estufa, torresmos serem substituídos por pedaços de "jerked beef". Por que a farmácia não virou "drugstore", vendendo, além de remédios, chocolates, balas, calças, conjuntos de moletom, macarrão, fones de ouvido, coolers e micro-ondas? Parece que o raio gourmetizador-americanizador passou pelas padarias, pelos botecos, pelas quitandas, óticas e lojas de chocolate e se concentrou inteiro nas barbearias. Ops. Nas "barber shops".
O papo "decolonial" às vezes enche um pouco o saco. Não tenho paciência praquele pessoal que, tomado por um ufanismo retrógrado vindo de 1969, fica contra o "imperialismo ianque", mas vendo essas barbearias pelo país inteiro, seus pirulitos tricolores girando na porta e os ZZ Topzêra aguardando no interior, sinto vontade de participar de uma passeata contra a guitarra elétrica na música popular brasileira, cantando Geraldo Vandré.
"Barber shop": não quero soar careta ou reacionário, mas acho uma barbeiragem.