O matemático, a carta e a ferradura

1 day ago 3

O meu amigo Jair Koiller, professor visitante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, visivelmente orgulhoso, me fez chegar às mãos o último número da Notices, a revista mensal da Sociedade Americana de Matemática. Orgulho mais do que justificado, pois a revista estampa na capa artigo dele relatando uma descoberta recente, e muito surpreendente, sobre um episódio fulcral da história da matemática no Brasil.

Para entender, precisamos recuar no tempo, até o final da década de 1950, quando os jovens matemáticos brasileiros Elon Lages Lima e Maurício Peixoto, do recém-criado Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), travaram conhecimento com o igualmente jovem norte-americano Steve Smale, professor da Universidade de Chicago.

A essa altura, Smale já era uma das mais brilhantes lideranças matemáticas de sua geração, especialista em topologia. Inspirado pelos avanços pioneiros que Maurício vinha obtendo em sistemas dinâmicos, ele começou a trabalhar também nessa área. Então os dois brasileiros o convidaram a visitar o Impa, o que ele fez ao final de 1959.

Talvez tenha sido o período mais profícuo de sua extraordinária carreira matemática. Durante os seis meses que passou com a família em Copacabana, Smale demonstrou a conjectura de Poincaré, um dos problemas mais importantes e famosos da matemática, em dimensão 5 ou maior. Por essa façanha, ele seria distinguido com a prestigiosa medalha Fields em 1966.

O problema, formulado por Henri Poincaré no início do século 20 e que já tinha sido atacado por vários excelentes matemáticos, sem sucesso, tem a ver com caracterizar matematicamente o que é uma esfera. Poincaré tinha em mente esferas de dimensão 3, mas a originalidade de Smale foi considerar a questão em dimensões maiores (onde deveria ser mais difícil!) e resolvê-la. O problema original de Poincaré só foi solucionado em 2003, pelo russo Grigory Perelman, e o caso de dimensão 4 ainda está aberto.

Como se não bastasse, durante esse período Smale fez outra descoberta matemática tão ou mais impactante do que a conjectura de Poincaré: ele encontrou um objeto matemático, a "ferradura", que hoje está na base de toda a teoria dos sistemas dinâmicos.

Tudo começou com uma carta de 20 de fevereiro de 1960, em que o colega Norman Levinson chamava a atenção para trabalho em que mostrara que equações diferenciais podem ter um número infinito de soluções periódicas e que, de fato, isso acontece frequentemente. Esse resultado de Levinson ia totalmente contra a intuição de Smale e, pior ainda, contradizia frontalmente o seu primeiro trabalho em sistemas dinâmicos, que ele acabara de publicar.

Num esforço notável para resolver a sua perplexidade perante essa situação, Smale foi levado à descoberta da ferradura, que mudou os rumos da matemática no Brasil e no mundo. O relato do que se seguiu já entrou nos livros de história, merecidamente, inclusive porque suas repercussões extrapolaram a academia e alcançaram até o mundo da geopolítica.

Mas a carta, a fatídica carta de Levinson na origem de tudo, essa simplesmente desapareceu e há muito foi dada por perdida. Até que foi encontrada pelo Jair, no que ele chama "um golpe de sorte". Não perca a semana que vem!

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