Demorou muito pouco para que uma descoberta arqueológica relevante, mas não exatamente conclusiva, acabasse virando uma discussão sobre categorias raciais modernas. Refiro-me ao estudo sobre o qual escrevi nesta Folha poucos dias atrás, em que foi apresentada a primeira análise do genoma (conjunto do DNA) de um egípcio antigo.
O homem cujo material genético foi analisado morreu há mais de 4.500 anos. Seu DNA indica que ele tinha pele, olhos e cabelos escuros, ainda que com algum grau de incerteza sobre a tez exata. Ele descendia, ao que parece, de uma mistura de grupos nativos do norte da África (a fração predominante de sua ancestralidade) com populações de origem mesopotâmica, o que sugere um intercâmbio considerável entre o Egito e regiões relativamente distantes do Oriente Médio naquela época remota.
No caso desse estudo, cometi duas temeridades: 1) a de gravar um pequeno vídeo sobre a pesquisa e publicá-lo nas minhas redes sociais e 2) a de ler os comentários que foram aparecendo. De um lado, algumas pessoas reagiram à reconstrução da aparência do indivíduo dizendo "que óbvio, é claro que os antigos egípcios eram negros".
De outro, houve quem reclamasse de uma suposta manipulação: "Hoje em dia não tem mais nenhum personagem da Antiguidade branco, inventaram até um Jesus negro". E mesmo os que, sem uma oposição direta à reconstrução da aparência do sujeito, fizessem questão de ressaltar que um egípcio antigo de pele escura não era a mesma coisa que um africano atual das regiões ao sul do Saara; uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, diziam.
Antes de mais nada, volto a ressaltar algo que já estava na reportagem: trata-se de apenas UM indivíduo do Egito Antigo. De uma região específica (o chamado Médio Egito) e de uma época específica. Outros estudos não abrangeram o genoma como um todo e também não abrangeram a diversidade geográfica e temporal de um Estado que perdurou por três milênios e teve contato com os mais diferentes povos.
Tudo isso já deveria ser suficiente para segurar a pressa de afirmar, de maneira unívoca, quem seria o egípcio padrão —é bem possível que isso jamais tenha existido e que, conforme as representações artísticas ao longo dos séculos indicam, tenha havido uma gradação entre tipos físicos mais "brancos" ou "negros" no vasto território dominado pelos faraós.
O fato de o Estado egípcio da Antiguidade ter surgido justamente nessa zona de contato entre o que enxergamos erroneamente como "raças" estanques deveria ser suficiente para evitar qualquer interpretação simplista de suas origens e trajetórias.
É indiscutível que o Egito recebeu influências culturais e biológicas do Oriente Médio. Mas ele também está enraizado na África, e não apenas por estar do lado africano do mar Vermelho —o idioma egípcio antigo, por exemplo, tem uma diversidade muito maior de parentes próximos naquele continente do que fora dele.
Por fim, é preciso cautela com quem usa de todos os malabarismos possíveis para tentar dissociar uma civilização tão grandiosa quanto o Egito do resto da África. Se a motivação para isso é o preconceito, é uma manobra fadada ao fracasso, já que, da Etiópia ao antigo Zimbábue, não faltam civilizações dignas de nota no passado africano.