O escritor Raphael Montes afirma que prefere que alguém lide com o sadismo de modo sadio lendo seus livros de ficção do que leia a Bíblia e bata na esposa. A afirmação foi feita em entrevista ao Roda Viva da última segunda-feira (21).
Deixo claro que o Raphael não disse que a leitura da Bíblia era responsável pela violência doméstica. Porém, a declaração segue sendo infeliz, ainda mais por ter sido feita por um escritor premiado.
O objetivo do escritor era criticar a hipocrisia religiosa, mas, ao fazê-lo associando a leitura da Bíblia à violência doméstica, ele reforçou o preconceito contra evangélicos, sabidamente promotores da leitura da Bíblia.
Hipocrisia não é atributo exclusivo de pessoas religiosas ou somente de crentes evangélicos. Uma pessoa pode ler o Corão, o Bhagavad Gita ou o Evangelho Segundo o Espiritismo, religião professada por Raphael, e praticar violência doméstica e outros pecados condenados pelos livros sagrados.
É verdade que há modos de ler a Bíblia por evangélicos que podem contribuir para acobertar a violência doméstica. Karin Kepler Wondracek, nesta Folha, mostrou como funcionam essas leituras dentro das igrejas. Entretanto, violência é um fenômeno multifatorial e estigmatizar um grupo religioso não ajuda a enfrentá-la de modo efetivo.
A certa altura da entrevista, Raphael foi perguntado sobre porque escreve suspenses policiais e não livros de terror. A resposta foi: "o monstro que sempre me interessou é o monstro humano". Pensei com meus botôes: puxa, a Bíblia também é sobre o monstro humano.
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A Bíblia narra histórias tão violentas quanto as que consagraram o jovem escritor carioca. Alguns relatos bíblicos equiparam-se, sob o ponto de vista literário, a "Bom dia, Verônica", de Raphael e Ilana Casoy, no que diz respeito à crueldade e ao sadismo.
Lembro-me da história do levita da região de Efraim, registrada no livro dos Juízes. Sua concubina o deixou e voltou para a casa paterna. Ele foi atrás dela e a convenceu a retornar em sua companhia. Eles voltavam para Belém quando pararam para dormir em Gibeá. Um grupo de homens do vilarejo invadiu a casa e abusaram da mulher até matá-la. Seu marido, o levita, partiu o corpo dela em pedaços e enviou um para cada tribo de Israel. O resultado foi uma guerra que deixou mais de 25 mil mortos.
Alguns sugerem que a simples presença de relatos de violência na Bíblia diminui sua sacralidade. Contudo, defendo a ideia oposta. A preservação dessas histórias, que expõem a maldade humana, é a prova de que a hipocrisia religiosa não conseguiu adulterar as Escrituras Sagradas ao longo dos séculos.
Raphael já vendeu mais de 1 milhão de livros. Suas histórias conquistam o público jovem apresentando a maldade humana sem disfarces. Não se trata de literatura religiosa, todavia, Raphael toca, por outros caminhos, sentimentos e emoções que são tradicionalmente acessados na alma humana pelas religiões.
Entre a visão positiva sobre os seres humanos de Jean-Jacques Rousseau e a visão pessimista do reformador João Calvino, claramente a literatura do autor de "Jantar Secreto" e "Suicidas" inclina-se em favor do segundo.
Aliás, quando ouvi Raphael declarando na entrevista no Roda Viva seu interesse pelos monstros humanos, foi como se estivesse lendo nas "Institutas da Religião Cristã", clássico de João Calvino: "não se pode negar que o monstro da iniquidade, com cabeças de hidra, está à espreita no peito de todo homem".
Fico pensando que diálogos entre leitores da Bíblia e fãs dos livros do Raphael podem revelar boas e, nem tão boas, surpresas sobre a condição humana. O modo como Raphael mencionou a Bíblia no Roda Viva não foi um bom começo para o diálogo, mas não impede que seja feito.