Livros da Fuvest: Em 'Memórias de Martha', cortiço é cenário e personagem da exclusão; conheça

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A partir de uma visão crítica da realidade, o livro "Memórias de Martha" foi um dos pioneiros a retratar as vivências da população marginalizada dos cortiços do século 19. Na obra incluída na lista de leitura obrigatória do vestibular da Fuvest 2026, a escritora Júlia Lopes de Almeida destaca a presença de mulheres nesse contexto de miséria, evidenciando como elas enfrentam camadas ainda mais profundas de exclusão.

"(...) o sol não entrava arrojado e luminoso pela janela do ensombrado quarto do cortiço, como pelas de moldura envernizada da aula e, sobretudo, não teria companheiras risonhas e turbulentas: havia de suportar as brutalidades dos vizinhos imundos" – trecho do livro ‘Memórias de Martha’.

A seguir, saiba mais sobre a escritora e o livro.

Quem é a autora

Filha de portugueses, Júlia nasceu em 1862 e morreu em 1934, após contrair malária em uma viagem para a África. Escritora carioca durante a "belle époque" tropical, Júlia era uma mulher branca da elite. "Há uma crítica sobre isso, mas ela trazia outras realidades em suas obras’", comenta Anna Faedrich, professora de literatura brasileira da UFF (Universidade Federal Fluminense).

A autora transitou por peças teatrais, crônicas, contos, romances, conferências, ensaios teórico-críticos e diários de viagem. Sua carreira começou aos 19 anos, com uma crítica de arte publicada no jornal Gazeta de Campinas. Mas foi como romancista que ficou mais conhecida, lançando 11 obras do gênero. "Um leitor contemporâneo deve se perguntar como alguém que teve uma produção dessa envergadura passou despercebida", analisa Fani Tabak, professora de literatura brasileira da UFTM (Universidade Federal do Triângulo Mineiro).

O Rio de Janeiro ocupou um papel central em suas criações. "Júlia era uma 'flâneuse'", diz Faedrich fazendo menção à definição de "flâneur", de Charles Baudelaire. O termo se refere aos homens observadores da experiência urbana que surgiram com a modernidade. "É interessante falar sobre isso, porque a experiência do corpo feminino no espaço público sempre levantou uma série de questões", pontua Faedrich.

Júlia foi uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras, mas teve o seu nome excluído da lista de fundadores frente ao aceite exclusivo de candidaturas masculinas à época.

O que é importante saber sobre o livro

As diferentes versões

Com estreia em folhetim, em 1888, a obra seguiu o modelo clássico do formato, com peripécia e resolução feliz. Além de conter um apêndice, o texto narra a morte do pai de Martha por febre amarela, uma denúncia por parte da autora sobre a falta de investimento na saúde pública. Esses aspectos foram reformulados quando a obra, enfim, se tornou livro em 1899. Já na década de 1920, a narrativa voltou a sofrer alterações. Júlia resgatou aspectos da produção original, prevalecendo essa versão nas edições seguintes.

Estrutura patriarcal versus emancipação feminina

Uma família perde posição social com a morte do pai. Mãe e filha, ambas chamadas Martha, passam a viver em um cortiço. Suas vidas apenas prosperam quando a filha, após estudar, se torna professora. Júlia, assim, mostrou que uma mulher sem instrução se via desamparada socialmente, mesmo que a obra tenha apresentado um desfecho controverso: emancipada, Martha se casa. "O que a Júlia fez foi questionar a sociedade do final do século 19. Martha iria precisar da tutela masculina", destaca Tabak.

A polêmica do cortiço

Mais que um cenário, o cortiço é um personagem. "Se você pegar [o que diz] a tradição historiográfica brasileira, o primeiro autor a falar do cortiço é Aluísio Azevedo [a publicação de "O Cortiço" ocorreu em 1890]. E ‘Memórias de Martha’ já mostra que não", diz Tabak.

Segundo Faedrich, "o cortiço ganha uma importância de registro histórico. As pessoas viviam em instalações insalubres e Júlia denuncia isso". Trata-se de um lugar com pobreza, violência e doenças. "É um tema atual para refletir sobre a criação do SUS. Mesmo com problemas, é impensável a ausência de um sistema de saúde pública", destaca Tabak.

Consciência de classe

Quando a mãe vai à casa de uma freguesa, Martha se compara à filha da mulher burguesa de mesma idade em um reflexo de espelho que desnuda as realidades. Ela se viu malvestida frente a uma garota com roupas trazidas de Paris que, cruel, diz que enxergou a fealdade dela. Essa é uma das passagens da obra que gera reflexões em torno da desigualdade social, crítica contundente à realidade brasileira.

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